Publicidade
Expandir publicidade
Aliados de Jair Bolsonaro extinguiram colegiado do Ministério dos Direitos Humanos que busca vítimas do governo durante regime militar
Foto: Arquivo Nacional
Bruno Fonseca e Rafael Oliveira
José de Souza morreu em 17 de abril de 1964, nas primeiras semanas da recém-instaurada ditadura militar brasileira. Um dos cinco filhos de Nair Barbosa e Alcides de Souza, ele era mecânico e ligado ao Sindicato dos Ferroviários do Rio de Janeiro. Ele havia sido preso nove dias antes, detido para averiguações sob a acusação genérica de envolvimento em “atividades subversivas em conivência com o sindicato”.
> Matar o mensageiro e ignorar a mensagem, diz NYT sobre denúncia contra Glenn
Levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara, Souza foi mantido em uma sala com cerca de cem pessoas igualmente presas pelo regime. Durante a detenção, o mecânico presenciou companheiros de cárcere indo prestar depoimentos e voltando desmaiados. “Constantemente [se] escutava gritos e tiros de metralhadora nas dependências do Dops”, afirmou um colega de cela de Souza em depoimento à Comissão de Direitos Humanos e Assistência Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ).
Foram os militares que deram a notícia: o corpo de Souza estava no pátio do Dops. Ele teria se atirado pela janela do terceiro andar do edifício às 5 da manhã. O laudo médico informou óbito por choque com fratura de crânio com hemorragia cerebral.
Levaria 50 anos para que a história de Souza fosse reescrita. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, a morte do mecânico foi apontada como consequência de ter sido torturado pelas autoridades que o prenderam arbitrariamente. Segundo o documento, Souza morreu em decorrência da tortura por agentes do Estado –entre eles Cecil de Macedo Borer, então diretor do Dops da Guanabara – no contexto das sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar.
A morte de Souza foi decisiva para a CNV incluir Borer em uma lista de 377 pessoas apontadas como responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura. Além de José, Borer foi responsabilizado por assinar documentos sobre a morte de Edu Barreto Leite, terceiro-sargento do Exército brasileiro que teria se jogado de uma janela após ter sido perseguido pelos órgãos de inteligência por suposto envolvimento em atividades subversivas. Borer também foi o responsável pela primeira prisão do ex-governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, em 1933, quando este era estudante, e por coordenar os policiais que perseguiram e balearam o ex-deputado do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Carlos Marighella em um cinema, no Rio de Janeiro, em 1964.
Apesar do seu papel como diretor do Dops, Borer teria se aposentado no ano seguinte à morte de Souza, em 1965, recebendo aposentadoria militar. A partir de 2003, o ex-chefe do centro de tortura ainda deixou uma pensão vitalícia para a ex-companheira, Maria de Lourdes Mendonça. Em dezembro, o valor bruto pago foi de R$ 29 mil.
O benefício não é exclusividade de Borer: segundo apuração inédita da Agência Pública, ao menos outras três pessoas ligadas a crimes na ditadura deixaram pensões para beneficiários pagas até hoje, 35 anos após o fim do regime militar.
Sigilo de pensões de herdeiras de militares caiu 35 anos após fim da ditadura
O pagamento de pensões a viúvas e filhas solteiras de militares era um segredo mantido a sete chaves pelo governo federal. Apesar de custarem cerca de R$ 20 bilhões por ano, o governo se recusava a divulgar a lista detalhada dos pensionistas, com nomes dos beneficiários, valores recebidos e quem é o instituidor da pensão. A Pública tentou acessar esses dados em 2018, com outros veículos de jornalismo, mas teve os pedidos de acesso à informação negados pelo Ministério da Defesa, que alegou que a publicação desses dados fere sigilo pessoal. Na época, as Forças Armadas se limitaram a informar que havia cerca de 110 mil filhas de militares que recebiam pensões vitalícias.
Contudo, em janeiro deste ano, o Fiquem Sabendo – agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI) – obteve, após uma batalha judicial que levou cerca de três anos, a base completa de pagamentos a servidores inativos do governo federal. A lista contém todos os pensionistas e aposentados, inclusive as pensões vitalícias a filhas e viúvas de militares. Somente em novembro de 2019, todos esses pagamentos chegaram a mais de R$ 2,4 bilhões.
A Pública cruzou a base do Fiquem Sabendo com a lista de 377 pessoas apontadas como responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura feita pela CNV. A reportagem encontrou quatro nomes que, apesar de serem responsabilizados por violações de direitos humanos no regime militar, deixaram pensões a suas viúvas pagas até hoje, como é o caso de Borer, ex-diretor do Dops.
O número final pode ser ainda maior, visto que na lista da CNV há nomes comuns sem informações de identificação, como registro ou CPF, o que torna impossível descartar homônimos de nomes comuns. A reportagem considerou apenas aqueles casos nos quais, além de o nome completo ser idêntico, as informações de órgão pagador da pensão coincidiam com as de atuação disponíveis no relatório da CNV, bem como a data da morte do instituidor da pensão.
Legistas acusados de emitirem laudos falsos também deixaram pensões vitalícias
Apontados pela CNV como autores de laudos de causa de morte fraudulentos, três médicos-legistas do Instituto Médico Legal (IML) à época da ditadura militar também deixaram pensões para suas viúvas. Em dezembro, elas receberam valores entre R$ 3,3 mil e R$ 5,8 mil.
Ex-servidor do IML do Rio de Janeiro, o médico-legista Elias Freitas é apontado pela CNV como partícipe em sete mortes ou desaparecimentos forçados entre 1969 e 1982, parte deles de vítimas de torturas. Segundo a apuração da CNV, Freitas emitiu laudos fraudulentos sobre as vítimas Eremias Delizoicov, Geraldo Bernardo da Silva e Roberto Cietto, em 1969; Juares Guimarães de Brito, em 1970; Carlos Eduardo Pires Fleury, em 1971; Aurora Maria Nascimento Furtado, em 1972; e Solange Lourenço Gomes, em 1982.
Freitas foi também o médico-legista responsável pela necropsia do corpo do sargento Guilherme do Rosário, morto pela explosão de uma bomba no episódio do Riocentro, em 1981. Antes de morrer, ele chegou a ser diretor do Hospital da Polícia Civil, no Rio de Janeiro. Sua viúva, Olga Pereira Freitas, ganha pensão vitalícia desde 2008, tendo recebido R$ 5,8 mil em dezembro de 2019.
Colega de Freitas no IML carioca, o médico-legista Olympio Pereira da Silva é apontado pela CNV como autor de laudo fraudulento do militante estudantil Antônio Carlos Nogueira Cabral, morto por ação do Estado brasileiro com indícios de tortura em 1972. Ex-professor de medicina legal da Universidade Candido Mendes, ele é autor de livro sobre a área.
Seu filho, Olympio Pereira da Silva Júnior, foi ministro do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1994 e 2015. Em entrevista à série “Memórias do Ministério Público Militar (MPM)”, ele afirmou que o pai “sempre achou que ‘comunista comia crianças’”, e “com certeza estava inserido nesse contexto de repressão”. Para o ex-ministro do STM, o médico-legista tinha “um posicionamento bem de milico”. Desde 1993, a viúva de Olympio “pai”, Emília Cardoso Pereira da Silva, ganha pensão vitalícia, tendo recebido R$ 3,3 mil em dezembro de 2019.
Médico-legista do IML de São Paulo, Lenilso Tabosa Pessoa foi apontado pela CNV como responsável por laudo fraudulento da morte do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Hélcio Pereira Fortes, em 1972. Segundo testemunhas, Fortes foi vítima de sessões de tortura nas dependências do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo.
O médico-legista foi professor de medicina legal das faculdades de direito da USP e de São Bernardo do Campo. Desde que ele morreu, em 2007, sua viúva, Silvana Cristina Videira Tabosa Pessoa, recebe pensão vitalícia. Segundo a base obtida pelo Fiquem Sabendo e divulgada pelo governo federal, ela recebeu R$ 4,3 mil em dezembro do último ano.