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Comissão de Meio Ambiente. [fotografo] Leonardo Prado/Câmara dos Deputados [/fotografo]
Kenzo Jucá Ferreira*
Se fosse para conceituar o que o setor ambiental atravessou no primeiro ano do governo e do novo Congresso, os melhores vocábulos seriam: retrocesso e surpresa. Por um lado, o extremismo dos retrocessos e do desmonte do sistema de governança ambiental, apesar de previsível, surpreendeu até mesmo os principais setores do agronegócio, que temem perder mercados com eventual desregulamentação total do setor.
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Por outro lado, boas surpresas possibilitaram o enfrentamento desse cenário nas esferas legislativa e judicial. Na Câmara e no Senado formaram-se novos arranjos político-institucionais em torno da agenda socioambiental, o que evitou retrocessos ainda maiores e promoveu alguns avanços pontuais surpreendentes, apesar dos muitos absurdos aprovados.
2020 pode ser melhor. 2019 começou com o crime de Brumadinho, proliferação de queimadas, grilagem e incêndios florestais criminosos na Amazônia e em outros biomas e foi marcado pelo espantoso derramamento de petróleo na costa brasileira.
Na esteira do alto índice de renovação entre deputados (47%) e senadores (85%) que assumiram seus mandatos em 2019 e do perfil declaradamente anti-ambiental do governo, os diversos setores ambientalistas no parlamento e na sociedade também precisaram inovar. Realizaram diversas ações coordenadas de advocacy & policy e promoveram a formação de novos arranjos político-institucionais ambientalistas no Congresso, nos estados e na sociedade.
Como parte dessa estratégia, o novo arranjo ambientalista criou mesas de negociação com os principais setores do agronegócio e da indústria em torno das matérias legislativas em tramitação. As organizações da sociedade civil organizada e a bancada ambientalista souberam identificar corretamente as fronteiras adequadas durante as negociações no parlamento, sopesando suas reais possibilidades e limitações para a garantia de legislações minimamente equilibradas e alternando o diálogo com os processos de comunicação, campanhas, engajamento social e mobilização. Visaram com isso obter uma atuação mais efetiva diante da atual conjuntura brasileira, extremamente desfavorável ao desenvolvimento sustentável e ao combate a desmatamentos e incêndios. Obtiveram relativo êxito.
A estratégia resultou em algumas vitórias legislativas e judiciais, especialmente no que se refere à lei florestal brasileira; unidades de conservação e territórios indígenas; à prerrogativa do Legislativo em fiscalizar as funções do Executivo na área ambiental; ao licenciamento ambiental; aspectos das políticas indigenista e fundiária na reforma administrativa, dentre outras.
Em 2019, as primeiras ameaças estratégicas à legislação ambiental impostas pelo Executivo (aliado a parte do Legislativo e influenciado por setores vinculados a atividades criminosas como garimpo clandestino, extração ilegal de madeira e grilagem de terras protegidas) foram as alterações feitas pela comissão mista do Congresso (CMMPV 867/2018) no texto original da MP 867/2018 (por meio dos chamados “jabutis”) que pretendiam revogar tacitamente a lei florestal (Lei 12.651/2012 do Código Florestal); seguidas pela MP 870/2019 da reforma administrativa, que desarticulou a gestão dos órgãos do SISNAMA e das políticas fundiária e indigenista. Naquele momento, como uma espécie de cartão de visitas do que viria, outra pauta surgiu simultaneamente com bastante força: a nova lei geral do licenciamento ambiental, cujo projeto havia sido desengavetado.
Dessa forma, o início da legislatura colocou sob teste de fogo o novo arranjo ambientalista que ainda se reagrupava no Congresso, por meio de um pacote com três matérias extravagantes que tramitaram simultaneamente em duas Comissões Mistas e no Grupo de Trabalho do Licenciamento. Todas tinham presidências, relatorias e composições bastante desfavoráveis aos ambientalistas. Portanto, do ponto de vista meramente regimental, matemático e político formal, poder-se-ia vaticinar uma aprovação fragorosa de tais matérias, considerando a força política natural dos novos governos recém-eleitos, os interesses econômicos legais e ilegais envolvidos e a correlação de forças dada no Congresso. Entretanto, surpreendentemente não foi o que ocorreu, o que pode ser considerado uma parcial vitória política do novo arranjo ambientalista do Congresso em 2019.
O novo arranjo
Para o enfrentamento a esse pacote antiambiental - um tripé que incluía o desmonte do SISNAMA, INCRA e FUNAI, a revogação da lei florestal e o fim do licenciamento ambiental - foi desenvolvido um novo arranjo político-institucional no parlamento, que teve como eixos catalisadores de coordenação a Comissão do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados (CMADS) sob a presidência do deputado federal, Rodrigo Agostinho (PSB/SP), ambientalista histórico que cumpriu papel estratégico de liderança do debate técnico sobre o mérito das matérias legislativas e também político de interlocução com a Presidência da Câmara e com a bancada ruralista por meio da Subcomissão Agroambiental da CMADS; a Frente Parlamentar Ambientalista sob a coordenação do deputado federal Nilto Tatto (PT/SP), liderança facilitadora do processo de legislação participativa da sociedade civil e do envolvimento decisivo das principais organizações ambientalistas brasileiras nas decisões do Congresso, assim como das entidades nacionais de servidores ambientais federais e de membros do ministério público de meio ambiente.
A Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal (CMA) presidida pelo Senador Fabiano Contarato (REDE/ES) e a articulação da Senadora Eliziane Gama (CIDADANIA/MA) pela Frente Parlamentar Ambientalista no Senado, conjuntamente com o senador Jaques Wagner (PT/BA) também foram imprescindíveis no apoio aos temas correlatos.
Os movimentos sociais do campo, de agricultores familiares e povos indígenas também tiveram papel relevante na estruturação e execução do novo arranjo, junto ao “Fórum Amazônia” e aos líderes da Minoria e da Oposição, deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e deputado Alessandro Molon (PSB/RJ); e também aos coordenadores do Fórum, deputado Airton Faleiro (PT/PA) e da Frente dos Povos Indígenas com a liderança da deputada Joênia Wapichana (REDE/RR).
Esse novo arranjo político-institucional, até certo ponto, é derivado espontaneamente da correlação de forças entre as bancadas no Congresso e da atuação das organizações ambientalistas e rurais na Casa. Envolveu algumas centenas dos principais players do cenário socioambiental do país. Conseguiu evitar o rompimento total da “barragem” e conter parte considerável da avalanche de retrocessos impostos em 2019. É difícil saber até quando se manterá essa contenção ou se desviará a demanda de “rejeitos represados” para outros lugares, evitando assim o desastre total. Isso apenas no que se refere especificamente ao ano legislativo, obviamente, pois é notório que o desastre socioambiental total está em curso contra os povos indígenas e as populações tradicionais e contra as florestas, as águas e a biodiversidade brasileira numa verdadeira caçada de guerra clandestina que o crime organizado impõe sobre os territórios e a vida das pessoas.
Houve também uma estreita interlocução desse polo com os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), e do Senado Federal, Davi Alcolumbre (DEM/AP), o que garantiu o compromisso reiterado publicamente por ambos em pautar projetos positivos ao meio ambiente (o primeiro deles foi aprovado no plenário da Câmara: a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais – PSA, que tramita agora no Senado, texto que foi consolidado por meio do diálogo entre ruralistas, ambientalistas e governo na subcomissão agroambiental, sob condução do relator da matéria na CMADS, deputado Camilo Capiberibe (PSB/AP). Por acordo construído com a bancada ruralista, foi apresentado texto pacífico em plenário pelo deputado Arnaldo Jardim (CIDADANIA/SP) que havia relatado a proposição na legislatura anterior. Outro compromisso externado publicamente pelos presidentes das duas Casas é o de não pautar projetos que enfraqueçam a conservação ambiental ou flexibilizem a legislação.