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ENTREVISTA EXCLUSIVA
Congresso em Foco
28/6/2025 8:00
Professora de Sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Angela Alonso dedicou anos a investigar o maior ciclo de manifestações da democracia brasileira, tema do seu livro Treze - A política de rua de Lula a Dilma. Em entrevista ao Congresso em Foco, ela refuta a ideia de que as manifestações de junho de 2013 tenham sido meramente explosões de indignação popular e alerta: a direita pode voltar a ocupar as ruas em breve, caso encontre um novo motivo mobilizador.
Angela aponta que a direita construiu ao longo dos últimos anos redes sólidas, conectadas e persistentes, que continuam ativas e podem ser rapidamente reativadas. Ela explica que, historicamente, a direita só recorre à política de rua quando está fora do poder, mas tem estrutura para se reorganizar e protestar contra governos de esquerda. Questões sensíveis, como a reforma fiscal e mudanças na política de impostos, podem reacender essa mobilização conservadora.
"A direita não precisa ir à rua toda hora", resume a socióloga. "Ela vai à rua quando não está no governo. A política institucional e a política de rua estão umbilicalmente ligadas." Segundo ela, basta um estopim como uma pauta tributária impopular ou um fato inesperado para reunir novamente multidões.
Assista a trechos da entrevista:
As origens de junho de 2013
Angela desmonta a visão de que junho de 2013 tenha sido apenas resultado de indignação espontânea. Para ela, protestos de grande porte não surgem do nada, mas dependem de redes organizacionais amplas, coalizões diversas e capacidade de articulação. Naquele momento, convergiram nas ruas grupos de esquerda autonomista e neossocialista, além de setores conservadores e liberais, compondo um leque de reivindicações que extrapolava a narrativa dominante de movimento progressista.
Ela localiza ainda as raízes dessa mobilização na reconfiguração política iniciada em 2003, quando a esquerda chegou ao Executivo e afastou parte de seus movimentos sociais das ruas. Essa ausência abriu espaço para novas oposições crescerem e testarem sua capacidade de articulação popular.
Bolsonaro e a moralização da política
Angela também explica como Jair Bolsonaro soube explorar o ambiente de descrédito político que se aprofundou após a Lava Jato. Ao adotar posições extremas em temas como violência, moralidade pública e redistribuição, Bolsonaro construiu uma persona capaz de dialogar com grupos conservadores, insatisfeitos com a chamada "velha política".
Para a socióloga, a base social que se formou nesse processo redes cívicas, laços de afinidade, grupos de convívio presencial e virtual não desapareceu e pode se reorganizar em torno de novas lideranças ou novas causas, caso Bolsonaro perca protagonismo.
As ruas seguem centrais
Mesmo com o avanço do ativismo digital, Angela reforça que a rua continua sendo espaço fundamental para disputas políticas no Brasil. A internet ampliou o alcance e acelerou o recrutamento, mas não substituiu a presença física nas manifestações. E quem domina melhor essas ferramentas hoje, a direita sai na frente para futuras mobilizações.
"Para encher as ruas, não basta indignação. É preciso organização", alerta a socióloga.
Leia a íntegra da entrevista com Angela Alonso:
Congresso em Foco - A maioria dos analistas e acadêmicos dizia que era necessário esperar alguns anos para se compreender o que foi o movimento de junho de 2013 no Brasil. A senhora mergulhou fundo na investigação e escreveu um livro sobre o assunto. O que levou àquela onda de manifestações?
Angela Alonso Junho de 2013 é resultado de um processo. Na época se falou muito de uma explosão espontânea, uma espécie de bomba antipolítica, que de repente tivesse explodido, um conjunto de frustrações. Mas nenhum processo político de monta, de volume, de relevância, acontece do dia para noite. Desde o começo da pesquisa, eu tive em mente dois objetivos. Um era entender a dinâmica do que aconteceu em junho. Logo se estabeleceu uma narrativa e ela ficou predominante na mídia, nas interpretações, a interpretação de que era um grande movimento de esquerda. E a outra coisa foi fazer o que você me perguntou, entender de onde que isso veio.
A senhora suspeitava do que era?
Eu estudo movimentos sociais há décadas, o que me permitiu, na hora em que a coisa estourou, ver naquilo um ar de família com movimentos parecidos, em outras partes do mundo e tal. Mas me levantou uma suspeita imediata de que aquilo tinha que estar fermentando a partir de diferentes grupos, porque quando você tem uma manifestação muito grande, ela não é organizada por um único movimento. Sobretudo num país do tamanho do Brasil, levar gente à rua, lotar a rua, isso demanda uma rede organizacional muito grande. Ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, protesto não uma atividade espontânea, protesto dá muito trabalho. Um trabalho de organização muito intenso e que envolve muita gente.
Quem organizava?
Na pesquisa, eu primeiro tentei entender quem estava organizando para daí ir atrás dessas raízes. E aí, à medida que eu fui indo para trás, eu vi que eu tinha que ir muito mais para trás do que supunha. A gente teve no Brasil protestos variados, grandes, com muita gente na rua, no impeachment do Collor, em 92, nas Diretas Já e em 1964, esta última parte as pessoas um pouco esquecem, mas também foram grandes protestos de rua. Eu olhei para esses três parâmetros, o que essas coisas tinham em comum.
No caso das Diretas Já e do impeachment do Collor, você tinha uma agenda comum e em junho de 2013, não tinha.Eu olhei mais pra trás, para o pré-64, para ver o que tinha ali. Você tinha, na verdade, grupos diferentes disputando a rua. E o que tinha em 64 e tinha em 2013? Um governo de esquerda.
Então o meu ponto de partida foi o que aconteceu com a rua, com a política de rua, a partir da hora em que um governo de esquerda voltou a ocupar o Executivo no Brasil, o que não acontecia desde 64.
Eu voltei em 2003 e, a partir daí, eu comecei a reconstruir como que a rua foi sendo reocupada ou reconfigurada a partir da ocupação do governo pelo PT. Isso significou, na minha interpretação, uma desmobilização dos movimentos socialistas, redistributivistas, que vinham desde a redemocratização, porque ou eles foram para o governo ou eles passaram a fazer negociações, lobby, usar outras táticas para levar os seus pleitos, em vez de usar a mobilização de rua. E aí, a rua vazia foi sendo ocupada por outros tipos de oposição.
Quais tipos?
Um tipo de oposição para qual a literatura, os jornalistas e tal olharam com lupa, em 2013, foi a esquerda autonomista. Essa esquerda retoma os valores da contracultura, de crítica aos padrões de sexualidade, família, em favor de uma abertura para novos padrões de comportamento, novos estilos de vida, mas traz junto demandas de justiça social. Outro tipo foi uma esquerda neossocialista, porque também redistributivista, como a que estava no governo, mas um pouco mais moderninha do ponto de vista dos costumes.
A esquerda foi construindo essas duas oposições. Uma mais em torno dessas pautas, digamos, emergentes com a nova geração e uma outra neo-redistributivista, não satisfeita com a eficácia da maneira pela qual o governo vinha gerindo o problema redistributivo. Mas o mais importante, como fenômeno novo, foi a emergência de movimentos à direita do governo.
De que maneira?
Movimentos que vão desde os que se chamam libertários, que têm uma agenda muito próxima dos autonomistas em termos de costumes, mas que são a favor das liberdades econômicas, que são, na verdade, anti-Estado, de modo mais geral. E depois, movimentos mais conservadores, do ponto de vista moral e mesmo econômico, até movimentos francamente reacionários.
Ao longo dos dois governos Lula, foram se constituindo e crescendo e fazendo pequenos protestos esses três campos de ativismo: autonomistas, neossocialistas e este terceiro campo à direita, que se autodenominou de patriota. Em junho de 2013, eles chegaram, pela primeira e única vez, simultaneamente às ruas. Isso deu o volume e a variedade.
Quando se deu a cisão entre esses grupos? Foi na Lava Jato que esse grupo se desfez?
Acho que pra falar da Lava Jato, precisa voltar a todo o episódio petrolão. Tem uma característica sui generis em todo esse processo, que é o foco na corrupção.
Havia dois campos de oposição de rua à esquerda do governo e um grande campo à direita do governo, mas todos esses campos estavam fracionados em vários pequenos movimentos, com agendas muito particulares. Eram três grandes guarda-chuvas.
O grande eixo de junção de cada um dos guarda-chuvas foram três grandes temas que eu chamei de zonas de conflito, que são temas nos quais as diferenças entre esses grandes grupos, esses feixes de movimentos, eram inegociáveis.
Quais eram?
Violência, o uso da força, a pena de morte, dividia os grupos que eram mais favoráveis ou contrários a isso. Redistribuição, dividia os que eram a favor ou contra políticas de redistribuição de rendas, de oportunidades sociais escassas, como acesso à educação superior, políticas afirmativas, essas coisas. E encontrei um terceiro campo, que eu acho que esse que foi menos analisado, que era o da moralidade. E a moralidade tem duas facetas.
Quais facetas?
Essa privada, que eu mencionei: os movimentos doe campo autonomista trazem muito a ideia de uma nova sexualidade, de novos padrões de família, etc. Mas tem também grupos que se organizam contrários a isso. Um dos primeiros grandes movimentos do período Lula foi o movimento pelo direito à vida, contrário ao aborto.
Mas tem também a moralidade pública, um campo de nascença da direita. O tópico da corrupção é uma constante em discursos de direita e populistas ao longo da história. E, no entanto, esse tópico foi abraçado pela esquerda desde o mensalão, em uma ruptura que levou à formação do Psol a partir do PT. Cresceu dos dois lados do espectro político a ideia de que era preciso sanear moralmente o Estado e a política. Essa ideia de uma política moralizada se tornou transversal.
Isso pegou tanto a esquerda quanto a direita?
Ela pega um pedaço grande da esquerda e pega a direita. Isso realmente é algo que unifica. Assim, a Lava Jato ganhou muito apoio porque essa ideia da moralização tinha se tornado uma ideia hegemônica entre os diferentes campos, a direita e a esquerda. Aí eles confluíam.
Junho de 2013 pavimentou a eleição do Bolsonaro ou o avanço da extrema-direita?
Primeiro, são duas coisas, a direita e o Bolsonaro. São duas coisas que precisam ser separadas. A direita não chegou anteontem. Olhando a história brasileira, temos uma grande força dos movimentos conservadores na política. Na ocupação de governos, na gestão de políticas. Na sociedade, a gente teve, durante muito tempo, uma igreja conservadora que controlou a educação pública. Quando a gente vê surveys de atitudes, de preferências, a gente tem uma sociedade conservadora em vários itens.
Mas há uma nova direita?
Eu sou dos que se opõem a essa ideia de uma nova direita. Eu acho que a gente tem uma direita. E ela está aí, faz muito tempo. Agora, obviamente, a cada geração, você tem novas pessoas que abraçam esses valores, você tem novos meios de comunicar, mas isso acontece em todas as gerações. Por exemplo, quando o Jânio Quadros foi presidente, o "Varre, Varre, Vassourinha" também era uma coqueluche.
Na ditadura tinha o "Eu Te Amo, Meu Brasil". O que eu acho que acontece agora é que a gente tem tudo isso mais visível. A internet tornou tudo isso imediato, visível e de grande escala. Democratizou a exibição dessas coisas que aconteciam em pequena escala. Antes não dava para você saber que as pessoas estavam lá no interior do Brasil fazendo manifestações patrióticas. Agora você pode, imediatamente.
Acho que também se confunde muito a visibilidade com o aumento da relevância. A visibilidade aumentou. Não necessariamente a relevância. São duas coisas diferentes. E eu acho que tem uma confusão grande nesse campo.
Qual confusão?
A gente sempre teve direita. Agora, quando é que a direita vai à rua? Ela vai à rua quando ela não está no governo. Ela não precisa ir à rua toda hora. Se ela está governando na maior parte do tempo, ela usa as instituições. A política institucional e a política de rua estão umbilicalmente ligadas. Uma se alimenta da outra. Se quem está no governo é a direita, quem ocupa a rua é a esquerda. Se quem está no governo é a esquerda, a direita vai para a rua. Ela vai fazer oposição, aí a direita vai sair se manifestando.
E quando e onde Bolsonaro entra nessa história?
Outra coisa é o Bolsonaro. O Bolsonaro é uma conjunção de oportunidades, de um processo que não foi ele que construiu. Mas ele teve uma capacidade de se apropriar da oportunidade. Porque, veja só, esses movimentos de rua estão se constituindo, estão crescendo, não só como manifestação contrária ao governo petista, mas contra uma série de coisas que eles atribuem ao governo. Uma coisa é a dimensão do que o governo está fazendo; outra é a dimensão do perigo que eles associam ao governo. Por exemplo, essa fantasia do Brasil vai virar Venezuela, essas coisas.
Além disso, voltando à Lava Jato, eu acho que teve um momento de grande confluência entre a imprensa, a esquerda e a direita de rua, em relação à centralidade da corrupção e dessa necessidade de moralização da política. A gente tinha capas da Veja, uma atrás da outra, mas, na verdade, toda a grande imprensa adotou esse discurso. Tanto que, se você, antes dessa mobilização midiática, olha para as pesquisas de opinião, as pessoas estão falando que elas querem saúde, educação, etc.
A corrupção não liderava as preocupações?
Aí vem essa avalanche midiática; e a corrupção sobe lá no topo das preocupações nacionais. Tem um impacto do modo pelo qual a mídia tratou isso. E aí, depois disso, veio essa verdadeira caça aos marajás, como chamava o Collor lá atrás, que transformou o Sergio Moro num grande herói nacional. O processo da Lava Jato levou a uma destruição de lideranças, não só das que foram presas, mas também à descredibilização dos políticos de modo geral, dos partidos de modo geral. A Lava Jato fez um serviço, desse ponto de vista da percepção da política, de terra arrasada. Tanto que, durante o auge da Lava Jato, as figuras que foram cogitadas como lideranças nacionais eram os juízes, não eram os políticos. Isso abriu campo para que alguém que vinha correndo por fora, um político secundário, terciário, que vinha correndo por fora, e que conseguiu se apresentar como não político, pudesse ascender à posição que o Bolsonaro ascendeu.
Como Bolsonaro conseguiu ocupar esse espaço?
O Bolsonaro estava sempre no lugar certo em toda essa controvérsia, durante todos esses dez anos, entre o início do governo petista e as manifestações de 2013, e vai continuar estando no lugar certo até a eleição dele. Na discussão sobre redistribuição, ele foi o único, por exemplo, já no governo da Dilma, que votou contra os direitos das empregadas domésticas. Ele foi quem saiu falando do kit gay. Quando o Fernando Haddad era ministro da Educação, foi ele que atacou um programa para adolescentes na escola, que acabou gerando depois a Escola Sem Partido, falando que era uma cartilha gay. Ele entrou na redistribuição, ele entrou na moralidade privada, ele entrou na moralidade pública, e ele veio na violência, o terreno preferido dele. Ele esteve, entre as lideranças, no plebiscito do desarmamento que o Lula propôs e perdeu, ele foi uma das lideranças contrárias e vencedoras do plebiscito, pelo direito de portar armas. E depois, na Comissão Nacional da Verdade, ele defendeu diretamente a ditadura.
Ele tomou posições nas três zonas de conflito definidas pela senhora?
Sim, ele tomou posições extremas, que são posições sempre difíceis de tomar, porque elas não costumam ser muito populares. Mas, na hora em que se fez terra arrasada das outras lideranças, falando que os políticos são todos iguais, tudo farinha do mesmo saco, ele cresceu. Acho que ele teve também a sagacidade de usar essas posições extremas dele para construir uma figura, uma persona, como uma espécie de personificação desse movimento de moralização da política.
E a senhora acha que, hoje ainda, ele está sabendo se posicionar?
Essa janela de oportunidade parcialmente fechou, porque os partidos de direita se reorganizaram, tem outros candidatos, inclusive, que ele mesmo produziu, mas eu não sou cientista política para ficar dando palpite sobre eleição. O que eu acho é que, independentemente de quem se candidatar no campo dele, ele ainda expressa uma força política. Essa mobilização toda de direita que a gente teve ao longo dos últimos anos, ela tem ossatura. O que eu dizia no começo da nossa conversa, não é uma coisa espontânea. São muitas redes, não só digitais. Tem muitos grupos que funcionam porque as pessoas que estão neles convivem nessas redes de sociabilidade, que eu venho chamando de redes cívicas, são pessoas que compartilham o mesmo estilo de vida, são pessoas semelhantes, são pessoas que são amigas, não são laços fracos. E isso tudo, essas redes cívicas, pode convergir para o candidato da direita. Não precisa ser o Bolsonaro.
Estamos de volta a um governo petista. O PT aprendeu a lição de 2013?
Não sei. Em 2013, o PT não entendeu o que estava acontecendo. O PT não entendeu e os intelectuais petistas, muito vinculados ao PT, deram a interpretação que o partido adotou, de que era uma manifestação de esquerda.
Só depois, quando o negócio ficou muito grande, eles começaram a falar de um rebote da direita tomando a rua da esquerda. Eu tenho um banco de dados com todas as manifestações de junho. Desde o começo, você tem grupos desses três campos que eu mencionei se manifestando no país inteiro. Não é que a esquerda começou o protesto e a direita tomou. Você tinha vários protestos pequenos de direita e de esquerda. Uma hora eles foram crescendo.
Mas esse campo da direita continuou nas ruas...
Do ponto de vista numérico, quem cresceu mais foi esse campo patriota, porque depois eles voltaram para a rua em 2015, sozinhos, e eles levaram mais gente do que em 2013. Tem um volume muito grande desse campo desde o começo dos governos petistas. Isso foi crescendo. O PT demorou muito a lidar com isso. Primeiro, em 2013, a Dilma fez um pronunciamento no qual ela reagia aos pontos da esquerda. Ela chamou a reunião com quem o governo identificou como sendo as lideranças da rua. Só chamou gente de esquerda. Por exemplo, a Carla Zambelli, que era uma liderança muito importante na rua naquela hora, não foi chamada. Nenhum dos ativistas que estavam lá desse campo patriota foi considerado. Isso significa que o governo não abriu interlocução. Não que o governo fosse atender a todas as demandas, mas havia demandas, como no caso da corrupção, que eram demandas comuns à esquerda e à direita. Poderia ter aberto canais de negociação, sobretudo com grupos que eram mais de centro. Mas o governo não viu isso.
Essa é uma preocupação hoje do governo Lula?
Acho que o governo Lula começou com uma percepção da rua como se ela fosse uma rua igual à que subiu a rampa com ele. Aquela cena da subida da rampa dele, na última posse, é uma cena na qual estão ali todos os movimentos do campo neossocialista e do campo autonomista. Estão todas as diversidades e toda a redistribuição. É uma simbologia muito forte, de que este é um governo de duas esquerdas. Não é mais o governo que subiu a rampa em 2003, que era o governo redistributivo, o governo dos trabalhadores. Mas, também é um governo que governa sitiado, tanto no Congresso quanto na sociedade. Ele chegou com pouca força.
Não há margem para enfrentar isso?
Ele não tem latitude para fazer grandes políticas. E o que aconteceu nos governos anteriores do Lula, que vem acontecendo agora, é que as políticas que vão sendo prejudicadas são aquelas que têm justamente menos apoio. As políticas que dizem respeito a minorias não encontram apoio na parte direita do parlamento.Elas são as candidatas a dançar mais rapidamente. A gente está vendo que o governo está governando com grande dificuldade em todas as áreas. Não por acaso, o Lula se lançou para a política internacional, que é um campo no qual ele consegue brilhar, porque na política nacional realmente está difícil.
A esquerda e o governo podem conseguir botar gente na rua?
Acho que o governo tem pouca latitude para agir. Tem pouco espaço de ação. Difícil até dizer se aprendeu ou não aprendeu as lições de 2013, porque não está tendo espaço para fazer esse tipo de negociação com a sociedade, porque está tendo que lidar com o Congresso, com os partidos, e enfrentou uma tentativa de golpe. Lula subiu a rampa com as duas esquerdas. Dali uma semana a extrema-direita tentou derrubar o governo. Não é simples a situação deste governo.
A senhora vê espaço para um novo junho de 2013, uma onda de manifestações nas ruas?
A gente sempre tem movimentos sociais de pequena escala, com protestos. A cidade de São Paulo tem protestos todos os dias. O difícil é fazer protestos volumosos, com dezenas ou centenas de milhares de pessoas. Esses protestos de médio porte, com vinte mil pessoas, são geralmente organizados por três movimentos. Para um protesto maior, de 100 mil, 200 mil pessoas, você precisa de uma grande rede de movimentos. É preciso que você tenha uma grande coalizão para poder organizar uma coisa dessas.
Antes de 2013, a gente teve o impeachment do Collor, as Direta Já, e lá em 64, quando a direita e a esquerda ocuparam as ruas separadamente A gente não tem grandes manifestações toda hora. E a gente pode pensar que, do mesmo jeito que as diretas e o impeachment têm uma certa continuidade, 2013 e o impeachment de Dilma, em 2016, também têm um uso intenso da rua. Depois, isso refluiu. Eu acho muito difícil ter uma manifestação de mesma magnitude. Agora, depende sempre do contexto. A gente não sabe o que vai acontecer. Se você tem coisas como, por exemplo, o que aconteceu no 8 de janeiro, se tem um golpe, se tem o assassinato de um político importante, se tem eventos que podem produzir grande mobilização. Mas no contexto político, digamos, regular, não me parece provável.
Em 2013, as redes já tinham força. Agora, muito mais. Isso pode dificultar ou fomentar a ocupação das ruas por manifestantes?
Desde os anos 90 e a virada do século, quando começou o uso de internet com mais intensidade, abriu-se uma discussão na literatura de movimentos sociais sobre isso.
E uma parte dos autores começou a declarar que a gente estaria na transição para o ciberativismo e que a rua tinha acabado como espaço de protesto e que agora os protestos seriam todos virtuais. Não foi o que aconteceu. O uso da internet tem sido, como as outras tecnologias, um facilitador, tem sido utilizado nas manifestações, mas não substituiu as manifestações.
Durante a pandemia, mesmo quando não deveriam ir, muita gente foi para as ruas pelo movimento antivacina, por exemplo. Não foram manifestações de grande vulto, mas o Black Lives Matter (Vidas negras importam), nos Estados Unidos, aconteceu ainda durante a pandemia, já com vulto. Não houve essa substituição.
Qual foi a mudança mais significativa nesse sentido?
Tinha uma expectativa de alguns autores que haveria uma substituição da rua pela arena digital. Agora, mudou a forma pela qual o recrutamento é feito. O recrutamento para o protesto, para essas redes cívicas, para os movimentos e tal, era um recrutamento que tinha que ser feito face a face, diretamente, e agora é ele feito de maneira mais difusa e com maior alcance. Isso vem em uso já há bastante tempo. Quem começou a usar isso primeiro e bem foi a direita. No caso de 2013, a Carla Zambelli criou uma série de páginas estaduais de Facebook. Isso criou uma possibilidade de adesão, de crescimento, que presencialmente um líder não teria. A direita vem fazendo sistematicamente há muito tempo e o faz muito bem, inclusive porque tem muita gente de tecnologia da informação nesses movimentos.
A esquerda ficou para atrás?
A esquerda é mais retardatária nisso. O campo autonomista também começou a usar a tecnologia mais cedo, mas o campo mais neossocialista usa ainda de uma maneira equívoca, porque eles tentam transmitir, ou mesmo traduzir, o mesmo de estilo de ativismo que eles têm presencialmente para a rede. Por exemplo, fazer discursos de persuasão, escrever longos artigos de persuasão. E o que funciona na rede, como a direita viu muito rápido, são os memes. Uma mensagem rápida, imagética, e que comunica sem explicar. Ela já comunica um estereótipo, ela não transmite um raciocínio. Tenho acompanhando esses memes do Trump nos Estados Unidos. Eu acho que a esquerda lá agora está fazendo um uso mais eficiente disso, inclusive com o uso da inteligência artificial, que produz cenas que são muito comunicativas e muito rápidas e também que se produz com muita velocidade. Mas isso só começou a acontecer agora. Agora, eu não vejo essa mesma velocidade aqui no Brasil. Não vejo o uso eficiente disso em relação ao Bolsonaro, por exemplo, ou ao Tarcísio de Freitas. Eu não vejo nada disso acontecendo do lado da esquerda. Ao passo que a direita continua fazendo isso em relação à sua figura antagônica central, o Lula. Eles vêm fazendo há muito tempo e continuam fazendo. Continua havendo essa diferença de uso das mídias. Agora, isso não leva a gente para a rua. Mas isso pode impactar o voto.
Há margem para a esquerda recuperar o espaço das ruas? Ou o caminho está mais favorável para a direita?
Acho que tem uma concepção muito disseminada de que as pessoas vão para as ruas por causa da indignação que um assunto particular produz. Mas é um encadeamento de fatores que leva as pessoas para a rua. Você pode ficar muito indignado, mas você posta a sua indignação nas redes ou você conversa com seus amigos, fala em casa ou no trabalho que você está indignado e você espera a próxima eleição e vota a sua indignação.
Numa democracia, o incentivo para ir à rua é baixo. Acontece que, regularmente, quem vai para a manifestação são os ativistas profissionais, que são as pessoas que realmente vivem da política. São os membros regulares de movimentos, assessores de partidos, bases de partidos e os estudantes, que são a base regular de manifestação. Fora isso, as manifestações tendem a ser muito setoriais. São os professores que querem aumento de salário, os médicos que querem mudança de condições de trabalho. É muito difícil levar muita gente para a rua em condições normais de temperatura e pressão.
O que a esquerda faria na rua hoje?
Se a gente ainda tem um governo de esquerda... O fato é que o que mais incentiva a mobilização é você ter um antagonista. Durante o Bolsonaro, a gente viu o tamanho que a esquerda de rua tem hoje. É pequeno. Não houve nenhuma manifestação do tamanho das que houve durante a Dilma. Quando a esquerda chamou a maior manifestação ali na eleição, o "Ele não", o outro lado respondeu com "Ele sim", um movimento de envergadura.
Verdade que a pandemia complicou muito, mas não teve nenhuma grande mobilização das esquerdas contra o Bolsonaro. Agora que tem um governo de esquerda, a gente vê menos motivo ainda. O que pode acontecer é o contrário, realmente uma manifestação de direita contra o governo.
E qual seria o mote?
Eu acho que uma questão que bomba é a reforma fiscal. Esse é um ponto que apareceu sistematicamente em 2013, em 2015, em todas as manifestações grandes de rua. A ideia que a direita e a esquerda construíram ao longo do governo Lula é que o Estado não é eficiente para levar a cabo as tarefas mais importantes da vida social e que a sociedade auto-organizada é que deve fazer isso. A esquerda defendeu isso por meio da auto-organização, de cooperativas, casas compartilhadas, várias coisas desse tipo; e a direita por meio da ideia da autogestão, dos co-workers e do empreendedorismo. A ideia de que é a sociedade que organiza melhor os assuntos econômicos.
O argumento muito usado era de que os impostos são muito altos e o seu uso muito pouco transparente, o que nem é verdade, mas é um argumento muito frequente desse campo patriota. Este é um ponto sempre muito delicado no Brasil: a correção da desigualdade quando ela afeta os grupos altos.
Eu acho que tem uma diferença também importante entre correção de pobreza e correção de desigualdade. Quando você olha para a correção da pobreza, ninguém fala contra. A direita não fala contra políticas que vão minorar a pobreza. O problema é quando você mexe na hierarquia social. E quando você mexe na estrutura de taxação, você impacta a estrutura social. Aí você pode ter algum tipo de reação. Exatamente porque a política fiscal é muito importante para corrigir a desigualdade, ela pode sofrer muita reação. Está sofrendo no Congresso, pode vir a sofrer também como movimento de rua.
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