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Política

Fé, emoção e política: quando a religião se torna palco da democracia performática

No Brasil, fé e emoção têm sido transformadas em instrumentos de manipulação política, criando uma democracia de aparência e enfraquecendo o debate racional.

Eduardo Vasconcelos

Eduardo Vasconcelos

15/9/2025 8:00

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Em um país profundamente religioso, discursos superficiais, a "sopa rala" da política, ganham força ao misturar religião, emoção e ressentimento como estratégias de poder. Este artigo analisa como líderes políticos e religiosos exploram esse tripé para mobilizar massas, corroendo a substância da democracia e afastando o eleitorado do conhecimento crítico que deveria orientar suas escolhas.

O Brasil entre a fé e a política performática

O Brasil é, reconhecidamente, um país de fé intensa, onde a religião ocupa papel central na vida cotidiana. Esse traço cultural, que deveria fortalecer valores éticos e comunitários, tem sido cada vez mais instrumentalizado como ferramenta de poder político. No espaço público, líderes como o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia exemplificam uma estratégia comunicacional que se encaixa perfeitamente no modelo da doxa: discursos superficiais, emotivos, que mobilizam ressentimentos e terminam por usar a fé como reforço legitimador.

Aqui, não se trata de uma crítica à fé em si, mas ao seu uso político como massa de manobra. É nesse cenário que surge o que chamei no artigo anterior de "sopa rala": palavras que parecem oferecer alimento ao eleitor, mas que, no fundo, são rasas e insuficientes para sustentar um projeto de país.

O tripé da manipulação: doxa, emoção e religião

A retórica desses atores políticos segue um tripé previsível:

Doxa - opiniões superficiais travestidas de análise profunda. O discurso de Eduardo Bolsonaro, por exemplo, frequentemente apela a ameaças difusas contra a "liberdade", sem apresentar políticas consistentes para garanti-la.

Linha emotiva - Jair Bolsonaro, ao longo de seu governo, transformou a comunicação política em espetáculo permanente, centrado em frases de impacto, gestos de confronto e narrativas de vitimização. Uma política performática que, como advertia Arendt (2016), mobiliza ressentimentos coletivos como se fossem combustível político.

Uso da religião - Silas Malafaia e outros líderes religiosos têm se tornado protagonistas de uma narrativa que confunde fé com projeto de poder. Em um país profundamente religioso, o discurso religioso-político ganha força como mecanismo de legitimação e como ferramenta para silenciar críticas racionais.

Esse tripé, doxa, emoção e religião, funciona como uma verdadeira muleta retórica: dá a sensação de firmeza ao discurso, mas não oferece sustentação real. Como discutimos no artigo anterior publicado aqui no Congresso em Foco (Quando a Democracia se Torna Espetáculo: doxa, episteme e a formação cidadã no Brasil), a doxa representa a superficialidade da opinião sem fundamento crítico; já a episteme é o conhecimento sólido, capaz de orientar escolhas conscientes e responsáveis. Quando a política se ancora apenas na doxa e em estratégias emocionais ou religiosas, temos a "sopa rala" da democracia performática. Quando, ao contrário, buscamos a episteme, abrimos espaço para uma democracia substantiva, que se constrói na razão, na educação crítica e na responsabilidade pública.

O efeito multiplicador: os "políticos de ocasião"

O mais preocupante é que esse modelo performático não se restringe a figuras de grande projeção nacional. Ele opera como um efeito contágio, espalhando-se rapidamente pelo sistema político e alcançando diferentes esferas: de parlamentares a líderes locais, de representantes já consolidados a novos aspirantes. Muitos desses atores, os que ironicamente chamo de "políticos de ocasião", procuram "surfar na onda", copiando o estilo do discurso raso, emotivo e religioso para obter dividendos eleitorais.

Forma-se, assim, uma espiral performática, na qual cada ator político, temendo perder espaço ou visibilidade, intensifica seus gestos de impacto, slogans ou referências religiosas, numa escalada em que o espetáculo substitui o conteúdo. Essa competição simbólica gera um ambiente em que a política se converte em palco de disputas teatrais, e não em espaço de deliberação responsável.

O processo se desdobra ainda em uma dinâmica de efeito cascata: discursos simplistas descem da cúpula nacional para os níveis locais, contaminando prefeitos, vereadores e até candidatos iniciantes. O resultado é uma cena pública saturada por palavras de ordem, mas empobrecida em projetos consistentes.

Esse efeito corrosivo atinge a própria democracia, pois cria a ilusão de participação cidadã quando, na verdade, o eleitor é conduzido como massa de manobra. Ao consumir essa "sopa rala" política, perde-se a substância da vida democrática: a busca por soluções reais para os desafios econômicos, sociais e culturais do país.

Religião e ressentimento viram ferramentas de poder, alimentando discursos rasos que fragilizam a democracia.

Religião e ressentimento viram ferramentas de poder, alimentando discursos rasos que fragilizam a democracia.Julia Martins/RasPress/Folhapress

Entre a simplicidade da fé e a complexidade da política

É preciso reconhecer, com respeito e humanidade, que muitas pessoas são levadas por discursos que exploram o medo e a imposição da fé. Em um país de maioria religiosa e de tradições populares fortes, a palavra de um líder espiritual tem peso imenso. Não é ingenuidade das pessoas, mas sim a força cultural da fé sendo manipulada por interesses políticos.

Aqui, quero ser claro: sou a favor de que a política seja discutida em todos os lugares, na escola, no trabalho, nas rodas de conversa, mas essa politização deve servir para formar cidadãos críticos, e não para transformar cultos religiosos em palanques eleitorais. Fé e política precisam dialogar em termos de valores, mas seus ambientes devem ser separados.

O papel do líder político é o de administrador de políticas públicas, responsável por gerir recursos, propor leis e executar projetos de interesse coletivo, sempre dentro da esfera para a qual foi eleito. Quando a fé é usada para usurpar essa função, ocorre um desvio grave: O cidadão deixa de ser orientado pela episteme, o conhecimento crítico, e passa a ser conduzido pela doxa, a opinião superficial manipulada por narrativas emocionais e símbolos de poder, muitas vezes travestidos de religiosidade ou identidade política.

Entre a fé e a razão: qual democracia queremos?

Não é preciso abrir mão da fé para sustentar uma democracia saudável. Pelo contrário: valores éticos oriundos das tradições religiosas podem enriquecer o debate público. O problema surge quando a fé é reduzida a ferramenta de manipulação emocional. Nesse caso, ela deixa de ser fonte de valores e se converte em uma armadura simbólica, usada por líderes políticos para se blindar de críticas e questionamentos racionais.

O desafio está em construir um espaço público no qual fé e razão dialoguem, mas em que a episteme, e não a doxa, oriente nossas escolhas coletivas. Se continuarmos a nos contentar com a política como espetáculo, com discursos que servem mais de liturgia eleitoral do que de projeto nacional, permaneceremos prisioneiros da superficialidade.

Fé racional e homens de boa vontade

Escrevo como gestor público e educador, mas também como homem de fé em Deus. Para mim, a fé não é instrumento de manipulação, mas força de construção. Uma fé racional, profunda, que se traduz em confiança serena e no compromisso diário de praticar o bem. Essa é a fé que não se limita à aparência ou ao discurso vazio, mas que mobiliza a esperança inabalável e dá ao ser humano a capacidade de transformar realidades pela ação responsável.

Nesse caminho, acredito no papel dos homens de boa vontade. Não me refiro aqui a um grupo seleto ou restrito, mas a todos aqueles que, em diferentes espaços - instituições públicas, famílias, empresas, comunidades religiosas ou sociais -, mantêm um coração aberto e disposto a agir com ética, solidariedade e justiça. São essas pessoas, guiadas por valores espirituais e pelo senso de responsabilidade, que sustentam a verdadeira substância democrática.

A democracia de que precisamos não se constrói apenas em palanques ou tribunas, mas no cotidiano das escolhas éticas, da prática da caridade, do respeito à pluralidade e da busca por um futuro comum. É nesse encontro entre conhecimento e espiritualidade, razão e fé, que se fortalece uma sociedade justa, fraterna e capaz de resistir às manipulações da superficialidade.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1984.

CONGRESSO EM FOCO. Do pôster de Hitler às fitas na boca no Congresso: como o vitimismo é usado para erosão democrática. Brasília, 11 ago. 2025. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 72. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

MIGUEL, Luís Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Unesp, 2019.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez, 2021.

PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.


O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

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