O presidente da comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI) que investiga os conflitos agrários, senador Álvaro Dias (PSDB-PR), acusa integrantes do colegiado de tentar acobertar supostas irregularidades cometidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). O senador alega que a chamada CPI da Terra já reúne indícios suficientes de envolvimento de coordenadores do MST em desvio de dinheiro público que deveria ter sido aplicado em assentamentos rurais.
Dias rebate a afirmação do relator da comissão, o deputado João Alfredo (PT-CE), feita ao Congresso em Foco (leia mais), de que membros da CPI estariam tentando criminalizar as atividades dos movimentos sociais. "Não há lógica na afirmativa do relator, que tem adotado o procedimento da obstrução dos trabalhos para tentar evitar que se investigue em profundidade", disse. Além de acusar o governo Lula de incompetente, o senador critica a falta de operacionalização do plano de reforma agrária e o suposto aparelhamento partidário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). "Gera expectativa, frustra e aumenta a insatisfação. O inconformismo leva à revolta, à violência e aos crimes, tudo na esteira da expectativa falsa gerada pelo governo. A proposta do governo tinha de ser compatível com a realidade. É possível fazer reforma agrária, sim, mas não na proporção que se apregoa", considera o senador. Nesta entrevista exclusiva, o presidente da CPI mista da Terra afirma que vai insistir na quebra do sigilo bancário e fiscal da Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), vinculada ao MST, e descarta a possibilidade de requisitar dados sigilosos também das entidades patronais, como sugeriu o relator da comissão. "Não há utilização de recursos públicos nesses casos", afirma Dias. O tucano e o petista estão em pé de guerra há pelo menos dois meses, quando informações bancárias e sigilosas da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), entidade ligada ao MST, foram repassadas à imprensa. João Alfredo acusou Dias de ter vazado as informações e acionou o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado para investigar a conduta do presidente da CPI. Os trabalhos deveriam ter sido concluídos no último dia 17, mas o prazo para as investigações foi prorrogado até junho. A exemplo da CPI mista do Banestado, a comissão parlamentar de inquérito da Terra virou palco de troca de acusações entre governistas e oposicionistas. A combinação tende a ser mais explosiva, na medida em que tem como um de seus principais componentes a disputa entre a bancada ruralista e setores da esquerda simpáticos ao MST. A seis meses da conclusão das investigações, o relator e o presidente da comissão já admitem que a CPI terá dois relatórios finais. Congresso em Foco - O senhor concorda com o relator da CPI, deputado João Alfredo (PT-CE), de que existem dois pontos de atrito insuperáveis dentro da comissão: um entre governo e oposição e outro entre os ruralistas e os defensores dos movimentos sociais? Álvaro Dias - A composição da CPMI é heterogênea, mas o que fica visível é a disposição de alguns parlamentares em oferecer uma blindagem àqueles que não aplicam corretamente o dinheiro público, preservando a impunidade. Mas há na comissão aqueles que querem investigar com profundidade a utilização desses recursos públicos. Dinheiro que foi repassado a cooperativas vinculadas ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), mas cuja aplicação se deu sem transparência e prestação de contas. O que se constata é a hipótese de esses recursos terem sido usados indevidamente na alavancagem de invasões de propriedades rurais.
"A composição da CPMI é heterogênea, mas o que fica visível é a disposição de alguns parlamentares em oferecer uma blindagem àqueles que não aplicam corretamente o dinheiro público, preservando a impunidade"
Em que casos, por exemplo?
Houve, por exemplo, a divulgação de um depósito, na conta da Cocrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), transferido no mesmo dia para a conta do José Rainha, um dos líderes do MST. É impossível que alguns parlamentares não queiram investigar isso. Com a quebra do sigilo bancária da Concrab, foi possível verificar, já num primeiro momento, irregularidades. Há pedido de quebra de sigilo da Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola), entidade na qual se concentram valores mais expressivos oriundos do governo. Essa solicitação está parada no STF (Supremo Tribunal Federal), aguardando decisão do ministro Joaquim Barbosa. Mas essa investigação atemoriza alguns integrantes da CPMI. Não entendo exatamente o porquê disso, já que o papel da CPMI é revelar e não esconder.
"Houve, por exemplo, a divulgação de um depósito, na conta da Cocrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), transferido no mesmo dia para a conta do José Rainha, um dos líderes do MST"
Mas há alguma prova conclusiva de irregularidades cometidas pelo MST?
Há, até o momento, indícios de irregularidades. Não nos cabe precipitar julgamentos. O que desejamos é a conclusão a respeito dessas suspeitas. Uma CPI pode oferecer atestado de boa conduta ou sugerir o indiciamento de pessoas. Por isso, insistimos na prorrogação da CPI exatamente para esclarecer fatos que ainda não estão esclarecidos. Se concluíssemos a CPI no final deste ano, não teríamos chegado a conclusão alguma, nem cumprido o objetivo fundamental.
O relator da CPMI diz que não faz sentido quebrar o sigilo bancário de entidades do movimento social sem adotar o mesmo procedimento em relação às entidades patronais. A CPI está tratando de forma diferenciada esses dois lados?
Quebrou-se o sigilo de uma entidade patronal do Rio Grande do Sul, que não foi à Justiça para impedir. Veja a distinção de comportamento. Quem não tem o que esconder não impede a quebra de sigilo. Quem impede a quebra geralmente é quem tem o que esconder. Em relação a outras entidades patronais não havia nenhuma justificativa para fazer isso, porque não havia utilização de recurso público. Essas entidades, inclusive, submeteram à CPMI documentos da Receita e balancetes, ao contrário do que ocorreu com as demais entidades investigadas. Existe, dentro da CPI, alguma tentativa de apresentar como criminosa a ação dos movimentos sociais, como tem dito o relator da comissão?
Essa é uma afirmação improcedente. Não há lógica na afirmativa do relator, que tem adotado o procedimento da obstrução dos trabalhos para tentar evitar que se investigue em profundidade.
"Não há lógica na afirmativa do relator, que tem adotado o procedimento da obstrução dos trabalhos para tentar evitar que se investigue em profundidade"
Por causa desse conflito, a tendência é que a CPI da Terra tenha o mesmo desfecho da CPI do Banestado, com a apresentação de dois relatórios na conclusão dos trabalhos?
Certamente teremos dois relatórios, mas esperamos deliberar sobre eles. O senhor vai apresentar esse relatório paralelo?
Não. Qualquer integrante da comissão pode apresentar voto em separado. Pretendo apenas presidir a CPI. A comissão terá algumas mudanças em sua composição neste ano e espero que, com isso, ela possa trabalhar de forma mais produtiva.
Em que sentido a CPI já pode sinalizar com a apresentação de propostas para a mudança da atual legislação?
É cedo para fazer essa avaliação. Recebemos várias sugestões de vários setores, como o Judiciário e o Ministério Público. Há uma iniciativa em curso, que é a criação das varas agrárias. A redação que propus foi acolhida para a emenda constitucional e submetida ao presidente da República para que o Executivo seja autor da proposta. Já houve, portanto, uma medida legislativa concreta. No mais, teremos de aguardar o desfecho da comissão.
O relator já anunciou que pretende recomendar mudanças na legislação para impedir que latifundiários sejam premiados com indenizações milionárias por causa da desapropriação de terras não produtivas. O senhor considera essa mudança positiva?
O que tem havido é incompetência de gerenciamento do governo. A legislação vigente não impede a reforma agrária. O problema é que, em algumas oportunidades, além da incompetência, há desonestidade, como, por exemplo, na desapropriação da área da Araupel (empresa do setor madeireiro e florestal) no Paraná. Foram pagos R$ 75 milhões por 25 alqueires. Como se justifica gastar tanto dinheiro em 25 alqueires para a reforma agrária? O governo tem de explicar isso. Devemos adotar alterações legislativas que permitam dar maior agilidade aos procedimentos, que estão muito lentos, inclusive na esfera do Judiciário.
"Foram pagos R$ 75 milhões por 25 alqueires. Como se justifica gastar tanto dinheiro em 25 alqueires para a reforma agrária?"
Mas houve alguma mudança no tratamento da questão da reforma agrária no governo Lula?
Houve, mas para pior. O atual governo é moroso e mudou o discurso quando não conseguiu realizar as metas propostas. Desde então, assumiu o discurso de que está priorizando a qualidade. Não há qualidade nem quantidade na reforma do atual governo. Ele perde em tudo para os governos anteriores. Houve um retrocesso no processo de reforma agrária com o atual governo, que gerou uma enorme expectativa, à qual não conseguiu corresponder.
Por que não conseguiu corresponder?
Por incompetência. O governo priorizou a militância partidária, substituindo quadros técnicos qualificados por militantes do Partido dos Trabalhadores. Isso puxou para baixo a qualidade do gerenciamento da reforma agrária. Instrumentalizou, de forma partidária, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), retirando dele a eficiência para assentar o verdadeiro sem-terra e viabilizar os assentamentos.
"O governo priorizou a militância partidária, substituindo quadros técnicos qualificados por militantes do Partido dos Trabalhadores. Isso puxou para baixo a qualidade do gerenciamento da reforma agrária"
O senhor acredita que haverá um acirramento dos conflitos no campo no próximo ano?
Há o anúncio de que teremos um "2005 Vermelho". Enquanto o governo não restabelecer a autoridade, estaremos sujeitos à violência.
A CPI pode evitar o agravamento dessa violência?
Ela já tem inibido um pouco. Na medida em que ela investiga cooperativas ligadas ao movimento, ela inibe a ação do MST, especialmente no que diz respeito à utilização do dinheiro público. Talvez seja essa uma das razões da tentativa, que teve origem em setores ligados ao movimento, de apressar o encerramento da CPMI.
O contingenciamento de recursos pelo governo também não prejudica a implantação da reforma agrária?
No caso do atual governo, o que é grave é a incapacidade na aplicação dos recursos. Os recursos disponibilizados não são executados por falta de competência e gerenciamento. O governo peca muito na execução orçamentária, mas não é só nessa área.
Como o senhor observa a aproximação de setores da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) com o MST?
É natural e justificável a opção da Igreja pelos pobres. Nós queremos também fazer essa opção pelos pobres, mas temos a preocupação de distinguir os necessitados daqueles que os utilizam como instrumentos para alcançar seus objetivos de natureza política e financeira. Há um aproveitamento do movimento. Houve uma instrumentalização política do MST, que passou a ser um aparelho de apoio eleitoral, como foi na última campanha. Esse desvirtuamento é que nós combatemos. A opção pessoal é sempre pelos excluídos, os sem-terra, mas não podemos confundir sem-terra com aproveitador.
"Houve uma instrumentalização política do MST, que passou a ser um aparelho de apoio eleitoral, como foi na última campanha"
O senhor considera possível tornar mais ágil o processo de reforma agrária no governo Lula?
O pecado maior do governo Lula é gerar expectativas falsas. Está comprovado que não temos condições de realizar reforma agrária na dimensão proposta pelo governo. Gera expectativa, frustra e aumenta a insatisfação. O inconformismo leva à revolta, à violência e aos crimes, tudo na esteira da expectativa falsa gerada pelo governo. A proposta do governo tinha de ser compatível com a realidade. É possível fazer reforma agrária, sim, mas não na proporção que se apregoa.
O relator também defende mudanças no modelo de agronegócio adotado no país, que, segundo ele, só é benéfico do ponto de vista da balança comercial, mas que gera desemprego e acentua as desigualdades sociais. O senhor concorda com ele?
Existe outro modelo no mundo? É claro que a mecanização e o avanço tecnológico reduzem a possibilidade de emprego rural, mas é por isso que se defende a distinção entre quem é trabalhador rural e quem é trabalhador urbano. O crescimento do desemprego na área urbana engrossa o movimento dos trabalhadores desempregados na área rural. O governo precisa investir na qualificação da mão-de-obra e na preparação do profissional para que ele possa exercitar sua atividade na área urbana, distinguindo bem quem é vocacionado para a atividade rural. Se o governo investir vigorosamente na qualificação da mão-de-obra especializada, vamos reduzir o contingente de trabalhadores sem-terra que pleiteiam um pedaço de terra para trabalhar.
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