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Saúde
3/6/2025 | Atualizado às 15:08
A humanidade nunca esteve tão perto do fim da Aids e o lenacapavir, um medicamento injetável que oferece proteção quase total contra o HIV, representa mais uma revolução na resposta contra a epidemia. No entanto, o custo proibitivo e o monopólio da Gilead Sciences, desenvolvedora do medicamento e detentora da patente, ameaçam transformar essa inovação em privilégio de poucos.
Nas últimas décadas, os avanços mundiais contra o HIV/AIDS foram notáveis. O diagnóstico tardio e a alta mortalidade dos anos 1980 deram lugar a terapias antirretrovirais que tornaram a infecção controlável e indetectável. A PrEP oral, medicamento preventivo, reduziu drasticamente as novas infecções, especialmente entre populações-chave. Como exemplo, São Paulo registrou uma queda de 54% nos novos casos de HIV, fruto da ampla distribuição da PrEP.
Agora, surge a chance de dar um novo salto. Os ensaios clínicos PURPOSE 1 e 2 comprovaram a eficácia próxima de 100% do lenacapavir. A grande vantagem é superar o desafio da adesão ao tratamento preventivo: enquanto a PrEP oral exige uso diário e pontual, a versão injetável exige apenas uma injeção a cada seis meses.
Essa mudança é crucial para populações historicamente negligenciadas, como pessoas em situação de rua, privadas de liberdade, trabalhadoras sexuais e outras que enfrentam barreiras e estigma para manter a regularidade dos comprimidos. A PrEP injetável não é apenas um avanço médico, é uma ferramenta de equidade, capaz de frear a epidemia entre os mais vulneráveis e acelerar o fim da AIDS.
Contudo, a Gilead comercializa o lenacapavir a um custo exorbitante, US$ 42.250 por pessoa ao ano. Estudos mostram que, com a produção em larga escala que se iniciou ano passado, esse valor poderia cair para US$ 40 por pessoa ao ano, patamar semelhante ao da PrEP oral. Em outubro de 2024, a empresa firmou acordos para produção genérica em países de baixa renda, mas deixou o Brasil de fora, mesmo com a participação do país nos testes clínicos. Ainda não sabemos o preço que será vendido no Brasil, mas dificilmente a Gilead Sciences oferecerá preços compatíveis com a realidade orçamentária do SUS. A questão é clara: sem pressão por preços justos, o Brasil corre o risco de ver uma revolução médica transformar-se em privilégio de poucos.
Essa exclusão é um retrocesso inadmissível, considerando a trajetória brasileira na luta contra o HIV/AIDS. Foi um esforço conjunto que construiu uma política de Estado duradoura. Além de pressionar as autoridades, o movimento LGBTQI+ continua direcionando esforços de mobilização e em campanhas de conscientização. O Congresso aprovou em 1996 a lei que tornou universal e gratuita a distribuição de antirretrovirais. Em 2000, o Brasil liderou mundialmente a defesa da quebra de patentes, forçando uma negociação com laboratórios e, consequentemente, a redução dos preços. Essa tradição de protagonismo e defesa da saúde pública não pode ser abandonada.
O Ministério da Saúde já enfrenta dificuldades para manter programas essenciais, como a distribuição de antirretrovirais diários. A introdução do lenacapavir exigiria realocar recursos de outras áreas críticas como testagem, tratamento de tuberculose, hepatites e sífilis, criando um dilema ético. A solução? Negociação firme e, se necessário, licenciamento compulsório, como feito com sucesso no passado. Em 2007, a licença compulsória do efavirenz reduziu seu preço drasticamente, salvando o programa de HIV/AIDS. É hora de reacender essa estratégia.
A janela de oportunidade está se fechando. Diálogos entre o governo e a Gilead já começaram, mas não há tempo para concessões. O Brasil deve exigir preços justos e licenças para produção local. Se a empresa resistir, a licença compulsória, prevista na Lei de Propriedade Industrial e respaldada pelo Acordo TRIPS, é o caminho. Trata-se de um instrumento legal, ético e comprovadamente eficaz. Em um país com um milhão de pessoas vivendo com HIV, a omissão não é uma opção.
Não estamos discutindo apenas um medicamento, mas uma decisão civilizatória: optar por preservar a saúde pública e garantir que a promessa do fim da Aids, mais próxima do que nunca, se concretize para todas as pessoas. Incorporar o lenacapavir ao SUS transcende a esfera técnica: é um teste de compromisso com a saúde pública. Enquanto nações ricas avançam rumo ao fim da AIDS, o Brasil não pode ficar para trás. O governo federal, o Ministério da Saúde e órgãos regulatórios têm a responsabilidade fundamental de colocar o bem-estar da população à frente dos interesses comerciais, para que o Brasil continue a protagonizar, não apenas com discursos, mas com ações concretas, a luta rumo a um mundo livre da AIDS.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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