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Regulação digital
11/11/2025 | Atualizado às 13:41
Imagine uma rede de supermercados que domina toda uma região. Os preços são baixos, o atendimento é rápido e a variedade de produtos parece infinita. Com o tempo, porém, surgem denúncias de que parte dos produtos seriam contrabandeados e que os alimentos poderiam estar contaminados. Há relatos de produtos vencidos e pessoas indo parar no hospital por intoxicação. Mesmo assim, o estabelecimento continua aberto. Quando questionado, o proprietário responde que fechar a rede de supermercados seria "interferir na liberdade do consumidor".
O problema se agrava quando se descobre que essa rede já comprou todos os outros mercados da região. Não há concorrência, nem alternativa. Quem quiser comer, comprar bebidas, produtos de limpeza ou consumir qualquer coisa precisa se submeter às regras daquele grupo econômico. É o monopólio na prática. E, em vez de corrigir as falhas, o dono prefere lucrar com elas. A lógica é simples: o que importa não é a segurança e a qualidade dos produtos, mas o número de vendas.
Parece ficção, não? Mas é exatamente essa a dinâmica distópica que domina o ambiente digital. As grandes plataformas, especialmente a Meta, controladora de Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp, tornaram-se o equivalente de uma rede de supermercados que serve conteúdo contaminado e ainda cobra caro por isso. Documentos internos obtidos pela Reuters revelaram que a Meta faturou US$ 16 bilhões em 2024 apenas com anúncios de golpes e produtos ilegais. Esse valor significa 10% de toda a receita anual da companhia, demonstrando o tamanho da participação da impunidade de crimes para o caixa da big tech.
Em resumo, o relatório demonstrou que as plataformas da Meta (como Facebook e Instagram) exibiram, diariamente, até 15 bilhões de anúncios suspeitos de fraude. E mesmo quando havia indícios evidentes de irregularidade, as contas só eram bloqueadas se o algoritmo atingisse 95% de certeza de que o anunciante era um golpista. Nos demais casos, a empresa simplesmente aplicava taxas mais altas, o equivalente a uma vigilância sanitária que autoriza vender carne estragada, desde que o supermercado pague uma tarifa adicional.
O próprio material interno da Meta reconhece que as suas plataformas estão envolvidas em um terço de todos os golpes bem-sucedidos nos Estados Unidos. Ainda assim, as medidas de controle seguem tímidas e nada transparentes, até porque a redução de fraudes e de crimes no ambiente das plataformas impactaria diretamente no faturamento.
Monopólio informacional
Se a analogia com o supermercado é pertinente, o ponto mais preocupante é o monopólio. Em tese, o consumidor poderia migrar para outro estabelecimento. Mas quando uma única corporação concentra o poder de comunicação, publicidade e interação social de bilhões de pessoas, não há concorrência real. A Meta está em todos os lugares: no grupo da família, nas ferramentas de trabalho, em tudo. Todo cidadão se vê preso a um sistema do qual depende das big techs para trabalhar, se entreter, manter relacionamentos e consumir até mesmo informações sobre política.
É justamente para enfrentar esse cenário que o Brasil precisa consolidar um marco regulatório robusto para o ambiente digital. Alguns passos importantes já foram dados: O ECA Digital (Lei 15.211/2025), derivado do projeto de lei 2.628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), representa um avanço significativo ao reconhecer a internet como espaço de convivência sujeito à proteção integral de crianças e adolescentes e evocar o dever de cuidado das plataformas. Além disso, o projeto de lei 2.338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), estabelece diretrizes para a inteligência artificial e segue em tramitação. Mais recentemente, o projeto de lei 4.675/2025, enviado pelo governo federal, busca prevenir práticas que prejudiquem a livre concorrência e garantir mais transparência, equilíbrio e liberdade de escolha, além de preços mais adequados.
Essas propostas se somam ao debate iniciado pelo projeto de lei 2.630/2020, também de autoria do senador Alessandro Vieira e relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), o qual foi engavetado após forte pressão das próprias big techs. Em meio às narrativas contrárias à regulação das big techs, surgiu um discurso que confundiu maliciosamente regulação com censura. O mesmo raciocínio que poderia ser usado por um supermercado que, flagrado vendendo alimentos contaminados e nocivos, alegaria estar apenas "defendendo a liberdade de escolha" do cliente.
Há ainda iniciativas dos estados que têm surgido para lidar com os desafios do ambiente digital. No estado do Rio de Janeiro, a deputada Dani Balbi (PCdoB-RJ) apresentou um conjunto de propostas que miram justamente o fortalecimento da soberania digital e a responsabilização das plataformas. O projeto de lei 6.361/2025 institui a Política Estadual de Enfrentamento a Golpes Digitais; o projeto de lei 6.362/2025 estabelece obrigações mínimas às plataformas que lucram com anúncios e transações dirigidas a consumidores fluminenses: se há lucro, deve haver também responsabilidade; já o projeto de lei 6.363/2025 avança no debate da soberania digital ao prever incentivos para software livre, interoperabilidade e apoio a pequenas empresas de tecnologia, reforçando um ecossistema de inovação.
Em São Paulo, a deputada Marina Helou (REDE-SP) preside a Subcomissão de Segurança Infantojuvenil nas Redes, vinculada à Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação e Informação (CCTI) da ALESP. O grupo tem promovido audiências com especialistas para discutir o fim da monetização de conteúdos nocivos e a criação de mecanismos de verificação etária. A subcomissão tem revelado como o modelo de negócios das big techs, baseado na economia da atenção, transforma o tempo das crianças em mercadoria e a desinformação em produto rentável.
Essas iniciativas se somam a tantas outras e evidenciam que o Brasil começa, aos poucos, a se mover para romper o ciclo de impunidade no ambiente digital. O desafio é fazer com que o avanço normativo acompanhe o avanço tecnológico. Regular não é censurar, é garantir que o interesse público não continue sendo o item mais raro no carrinho de compras do mercado digital.
Quem tem medo da vigilância sanitária?
Não há liberdade de expressão possível em um ambiente capturado por monopólios. A liberdade exige pluralidade e responsabilidade. Até porque, tal como a vigilância sanitária impede que supermercados sirvam alimentos estragados, a regulação das big techs deveria impedir que plataformas sirvam conteúdos fraudulentos e nocivos sob o pretexto da liberdade de expressão.
A analogia não é retórica: quando uma criança adoece após consumir um produto contaminado, o Estado é cobrado por omissão. No ambiente digital, a lógica é a mesma. A ausência de regras tem permitido a proliferação de crimes, a manipulação de usuários e a degradação da esfera pública. E quem mais sofre são os mais vulneráveis economicamente, educacionalmente e emocionalmente.
Regular o ambiente digital não é impedir a liberdade de expressão. É estabelecer padrões mínimos de transparência, dever de cuidado e responsabilidade. É reconhecer que as redes sociais deixaram de ser espaços de entretenimento e se tornaram infraestruturas críticas de comunicação e economia. Nesse meio tempo, a omissão regulatória custa caro: destrói reputações, estimula fraudes, desinforma eleitores, ameaça a democracia e coopta crianças e adolescentes para crimes hediondos.
Mas enquanto engatinhamos no debate regulatório do ambiente digital, fica a questão: Quantas vítimas ainda precisarão adoecer antes de admitirmos que o cardápio digital também precisa de vigilância sanitária?
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].