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Representatividade
27/11/2025 12:00
A indicação de Jorge Messias ao Supremo Tribunal Federal, feita no Dia da Consciência Negra, não é apenas uma escolha política infeliz, é um gesto simbólico que revela o quanto o Brasil ainda está disposto a instrumentalizar a pauta racial para blindar decisões que mantêm intacta a hegemonia branca no topo do poder.
Diante das críticas, parte do debate público apressou-se em fabricar uma saída conveniente: "ele é pardo". Como se a simples invocação dessa categoria estatística bastasse para transformar uma nomeação política em um ato de reparação histórica. Não basta. E é preciso dizer isso com toda a contundência: usar a categoria "pardo" para justificar uma indicação branca ao STF é cooptação da pauta racial.
É tomar o conceito de colorismo, criado para denunciar a hierarquia interna da negritude, e utilizá-lo como ferramenta de embranquecimento das estruturas de poder. É exatamente o tipo de operação simbólica que Sueli Carneiro e Cida Bento denunciaram por décadas: a branquitude se travestindo de pluralidade para continuar mandando sozinha.
O Supremo nunca refletiu a cara do povo brasileiro. Em 134 anos, teve apenas três mulheres, todas brancas. Nenhuma mulher negra jamais sentou naquela bancada. E mesmo que todas as próximas vagas fossem preenchidas por mulheres, os homens continuariam maioria até 2043. Isso não é acaso, é projeto.
Enquanto isso, 69% das pessoas presas no Brasil são negras, e 77% das vítimas de homicídio também. Entre os magistrados, apenas 14,3% se declaram negros. É um abismo que evidencia aquilo que boa parte da elite prefere não enxergar: a Justiça só é cega para quem não vive suas consequências.
Esse não é um sistema neutro. Ele não se reproduz sozinho. Ele depende de escolhas. E a escolha feita agora reforça a mensagem mais antiga do país: o topo é branco.
A tentativa de transformar essa indicação em símbolo de diversidade, justamente no 20 de novembro, agrava o problema. A data que deveria reafirmar a luta negra por vida, dignidade e poder institucional foi usada para calar críticas e silenciar uma demanda histórica: a presença de mulheres negras no STF.
Há décadas, o movimento negro denuncia que a categoria "pardo" foi criada para mensurar desigualdade, não para embaralhar identidades sempre que o poder se sente pressionado. A autodeclaração racial no Brasil tem sentido político, histórico e social. Não é um carimbo que o governo pode colar e descolar conforme a conveniência.
O Brasil precisa enfrentar seu racismo estrutural com seriedade, não com malabarismos discursivos.
A reação de parte da esquerda, disposta a defender a indicação a qualquer custo, também precisa ser questionada. A luta antirracista não pode ser um acessório que se usa quando serve e se abandona quando atrapalha a governabilidade. Não se trata de exigir pureza moral de governos progressistas, mas de entender que não existe justiça social possível sem justiça racial.
Quem deseja governar para o povo brasileiro precisa governar para o povo real, e o povo real é majoritariamente negro. Onde está esse povo no STF?
Quem paga a conta carcerária?
Quem sente a violência policial?
Quem está nos cargos mais precarizados do mercado de trabalho?
Quem ganha menos, estuda menos, morre mais?
Não são as pessoas brancas, mesmo as bem-intencionadas. Não são os homens brancos que seguem sendo indicados para a mais alta Corte como se isso fosse natural.
Por isso, é preciso dizer com todas as letras: não é representatividade quando quem sempre esteve dentro continua entrando, e quem sempre esteve fora continua esperando. Não há transformação institucional possível enquanto insistirmos em chamar de diversidade aquilo que continua sendo hegemonia branca.
E se reconhecer isso provoca constrangimento, que provoque.
Se gera incômodo, que gere.
Se causa rachaduras discursivas na esquerda, que cause.
Nada muda sem rupturas.
A pergunta que deveria orientar esse debate é simples, mas necessária: quem tem coragem de enfrentar o pacto narcísico da branquitude no coração das instituições brasileiras? A resposta, até aqui, é incômoda, mas verdadeira: ainda muito pouca gente.
E enquanto isso, seguimos repetindo as mesmas escolhas, disfarçadas de avanço.
O Brasil merece mais do que isso.
O povo negro merece mais do que isso.
A democracia precisa mais do que isso.
Porque, no fim das contas, diversidade não é slogan. Diversidade é poder. E poder, no Brasil, ainda tem dono.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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