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Gisele Agnelli
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ESTADOS UNIDOS
30/6/2025 11:28
Na sexta-feira, 27 de junho de 2025, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que juízes federais não podem mais emitir ordens judiciais válidas em todo o país, as chamadas liminares nacionais. Com isso, uma ordem executiva de Donald Trump, que revoga a cidadania por nascimento de filhos de imigrantes indocumentados, entrou em vigor em 28 estados, enquanto continua suspensa nos outros 22. Criou-se, assim, o que juristas já chamam de "dois sistemas constitucionais dentro de um mesmo país". A Corte não julgou o mérito da medida. Evitou decidir se ela fere ou não a 14ª Emenda, que desde 1868 garante a cidadania a quem nasce em solo americano. Preferiu, mais uma vez, fortalecer a máquina executiva, e enfraquecer o controle judicial sobre ela.
Essa omissão, como tantas outras sob o governo Trump II, é tudo menos neutra. Ela faz parte de uma estratégia clara: o Executivo provoca, testa os limites legais, força os tribunais federais a agir, e apela até a Suprema Corte, onde Trump construiu uma maioria conservadora que tem respondido com obediência doutrinária, silêncio ou permissividade.
Com a decisão sobre as liminares nacionais, os Estados Unidos passam a operar com dois regimes jurídicos simultâneos para um direito fundamental. Em 28 estados, bebês nascidos nos EUA de pais sem status legal não terão sua cidadania reconhecida automaticamente. Em outros 22, sim. Um direito antes garantido pela Constituição passa agora a depender do código postal. O juiz Kavanaugh, que acompanhou a maioria, chegou a reconhecer que isso é problemático, mas justificou dizendo que os casos "vão acabar chegando à Suprema Corte". Até lá, porém, milhares de crianças estarão à mercê da insegurança jurídica, ou da deportação.
A decisão é ainda mais grave por ter ignorado completamente os alertas da dissidência. A juíza Sonia Sotomayor leu em plenário sua discordância, o que é raro, e foi direta: "Nenhum direito está seguro sob o novo regime jurídico criado por esta Corte. O Estado de Direito não é garantido. Hoje é a cidadania por nascimento; amanhã pode ser a liberdade religiosa ou o direito à reunião".
Essa decisão é apenas a ponta do iceberg. Desde que reassumiu a presidência, Trump tem testado os limites institucionais com uma frequência inédita. E a Suprema Corte, em vez de contê-lo, tem funcionado como catalisadora do avanço autoritário.
Exemplos não faltam. Em abril, a Suprema Corte recusou-se a bloquear a demissão sumária de integrantes do Merit Systems Protection Board (MSPB) e do National Labor Relations Board (NLRB): duas agências federais independentes cujos cargos, por lei, têm mandato fixo e só podem ser destituídos por justa causa, mediante critérios legais estabelecidos pelo Congresso. O MSPB é responsável por proteger servidores públicos civis contra retaliações políticas ou demissões arbitrárias; o NLRB, criado ainda nos anos 1930 como parte do New Deal, é o principal órgão regulador das relações entre sindicatos e empresas privadas, protegendo o direito à negociação coletiva e à organização sindical.
Ambas as agências operam como pilares do funcionalismo técnico e do equilíbrio institucional entre Executivo e Legislativo. Mas a Corte, por meio de uma ordem não assinada, sem voto nominal ou sustentação oral, permitiu que o presidente demitisse seus dirigentes, ignorando frontalmente o precedente centenário de Humphreys Executor v. United States (1935), que proíbe esse tipo de interferência direta do Executivo em agências independentes. A decisão não revogou esse precedente, apenas o sufocou por omissão, abrindo caminho para a politização de órgãos reguladores e o aparelhamento do Estado técnico.
Na prática, o tribunal permitiu que Trump dissolvesse a autonomia técnica sem alterar a lei, apenas pela força da caneta presidencial e com o respaldo silencioso da Corte. Um passo decisivo na colonização do Estado administrativo por lealdades políticas.
No caso Abrego Garcia, a administração Trump deportou um pai de três filhos para uma prisão no El Salvador, ignorando uma ordem judicial expressa que proibia a remoção. A Suprema Corte, em vez de agir com firmeza, pediu ao governo apenas "esclarecimentos", mesmo diante de uma violação flagrante da autoridade judicial. O governo não respondeu. E nada aconteceu. Em junho, a Corte permitiu que o governo continuasse deportando pessoas para países terceiros, como o Sudão do Sul, mesmo sem garantias de segurança, violando tratados internacionais como a Convenção da ONU contra a Tortura e o Protocolo sobre Refugiados de 1967. Ignorou o princípio do non-refoulement, pedra angular do direito humanitário internacional, que proíbe a expulsão, deportação ou extradição de uma pessoa para um pais onde ela corre risco real de perseguição, tortura e ameaça a vida.
Por trás dessas decisões, está a adesão crescente da Corte à doutrina do Executivo Unitário: uma teoria que afirma que o presidente detém controle total sobre todo o poder Executivo, inclusive sobre agências reguladoras, fiscais e autônomas. Essa doutrina é defendida abertamente por juízes como Clarence Thomas, Samuel Alito e Brett Kavanaugh, em votos e citações de estudos acadêmicos e tem sido a base das decisões recentes que enfraqueceram o poder do Congresso e dos tribunais inferiores.
Essa doutrina não é apenas uma interpretação constitucional: ela é a espinha dorsal do chamado Projeto 2025, um plano político-jurídico elaborado por think tanks da direita trumpista, como a Heritage Foundation, com o objetivo de reconstruir o Estado americano como um aparelho centralizado de lealdade ao presidente. Sob esse plano, agências independentes seriam eliminadas ou aparelhadas, e o funcionalismo técnico substituído por aliados ideológicos.
"A teoria do Executivo Unitário, especialmente em sua forma mais agressiva, desfigura o sistema constitucional norte-americano ao reduzir a governança à vontade de um só homem - contrariando a lógica deliberativa que fundamenta o Estado de Direito."
Cass Sunstein, Harvard Law School
O mais perigoso não é a Corte agir mal. É a Corte não agir quando deveria. É o que David French, jurista conservador, chamou de "colapso simbólico da autoridade judicial": um tribunal que preserva sua imagem técnica enquanto entrega, por omissão, as chaves da República a um projeto antidemocrático.
Hoje, em 2025, a Corte se aproxima perigosamente do lado errado da história. Ao permitir que a cidadania dependa do CEP, que agências sejam desmontadas por ordem presidencial, e que migrantes sejam deportados para zonas de guerra, o tribunal legitima um governo que despreza os próprios limites constitucionais.
Na próxima semana, o Senado votará a controversa lei orçamentária batizada por Trump de "Big, Beautiful Bill" - a "Grandiosa e Linda Lei", um nome cínico para um pacote de mais de mil páginas que esconde, em meio a cortes, incentivos e repasses, uma cláusula inédita e devastadora: agências federais poderão legalmente se recusar a cumprir ordens judiciais caso não tenham dotação orçamentária específica prevista para sua execução. Em outras palavras: se o Congresso, hoje sob controle republicano, não reservar verba para implementar decisões judiciais, o Executivo estará autorizado a ignorá-las. Trata-se de um dispositivo que, na prática, destrói o poder vinculante das decisões judiciais federais, transformando a autoridade do Judiciário em recomendação facultativa.
Esse mecanismo, se aprovado, será a pá de cal final no sistema de freios e contrapesos americano. Trump, com maioria nas duas casas do Congresso e uma Suprema Corte omissa ou conivente, poderá ignorar decisões de juízes federais alegando simplesmente que "não há verba" para cumpri-las.
Se aprovada, esta cláusula implodirá o poder Judiciário. Trump deixará de operar como presidente dentro de um sistema de pesos e contrapesos e passará a governar, literalmente, como um rei com Congresso próprio e tribunais desarmados.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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