Entrar
Cadastro
Entrar
Publicidade
Publicidade
Receba notícias do Congresso em Foco:
Congresso em Foco
6/4/2021 | Atualizado 10/10/2021 às 17:09
A Segunda Guerra Mundial deixou de tal forma clara a existência de duas maneiras de enfrentar a tragédia que um livro do pós-Guerra, "O Senhor das Moscas", contém uma das melhores alegorias desses caminhos. Na obra, um grupo de meninos se vê isolado numa ilha após a queda da aeronave em que viajava e se divide em dois grupos, com princípios opostos. Enquanto um grupo busca se coordenar e estabelecer um enfrentamento coletivo, racional e ordenado da escassez e dos riscos, outro grupo atua de modo a estimular os conflitos e os ataques, privilegiando o enfrentamento individual da crise. Sem antecipar o final do livro, é interessante a maneira como ele expõe as duas lógicas e o choque entre os dois sistemas...
Se o Brasil investir no enfrentamento individualizado de uma crise coletiva como a da pandemia da covid-19, como faz o PL da "vacina VIP", estará adotando um caminho que costuma ter profundas consequências em termos de desintegração e conflito social. Se todos precisam desesperadamente de vacinas e apenas alguns poucos as têm, simplesmente por terem mais recursos (e não por uma decisão legítima), como administrar a tendência à violência? Se o PNI for deixado "às moscas", após a imunização dos que têm recursos, como controlar a revolta daqueles que não terão vacinas por pura falta de condições econômicas?
Nos parece que trilhar o caminho do individualismo sem freios diante de uma grave crise eminentemente coletiva pode representar a descida de alguns degraus civilizatórios. Podemos estar caminhando na direção do estado de natureza hobbesiano. Talvez, nessa perspectiva, o PL em questão seja uma boa síntese do Brasil: um País em que se fez Estado sem que houvesse sociedade. Não houve o pacto social, mas sim o transplante de uma institucionalidade estrangeira, movida exclusivamente pela cobiça. Diante dessa realidade, o Leviatã brasileiro não paira sobre todos, na verdade, torna-se mais um na guerra de todos contra todos.
Como ele é forte, há os que tentam dominá-lo para, com seus poderes, oprimir e vencer os adversários. E há os que tentam arrancar nacos de sua carne, sem serem percebidos ou combatidos. Em outras palavras, do Leviatã nacional só se beneficia uma elite extrativista. Que, diante da perspectiva da morte e ciente do fracasso do Estado em conseguir vacinas, não hesita em avançar com urgência inaudita para conseguir as suas próprias - ainda que se arriscando a tomar soro fisiológico. Outra ironia que sintetiza bem a situação - na guerra de todos contra todos, tanto pode vencer o mais forte quanto o mais esperto.
O PL defendido por Artur Lira permite que, na disputa pelas vacinas, os indivíduos mais fortes (com mais recursos) sejam o lobo dos mais fracos (com menos recursos). Esse caminho leva à chamada armadilha hobbesiana, em que, para sobreviver, a pessoa tem que ser no mínimo tão violenta quanto o seu vizinho. O contrato social, ao contrário, estabelece a possibilidade da cooperação, fundada na vontade - é um acordo de adesão voluntária, ainda que incondicional. Por essa razão, Hobbes é considerado fundador da Ciência Política moderna. Em uma situação de caos, o Leviatã deveria liderar os esforços de solução e saída da crise, não tirar férias milionárias e curtir feriados como se não houvessem quase quatro mil mortes diárias no país.
Tristes trópicos, nos quais ainda se trilham os caminhos do estado de natureza. Sabemos há quase 500 anos, não apenas não salva vidas, mas faz a vida do homem solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.
*André Sathler é economista, mestre em Comunicação Social e em Informática e doutor em Filosofia
**Renato Ferreira é advogado, mestre em Direito e doutor em Ciência Política.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
> Leia mais textos

Tags
Temas