O governo Lula chega ao final? Pode parecer loucura, mas a pergunta começa a ganhar contorno no momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se vê na defensiva, diante da acusação de que o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, teria distribuído mesada a parlamentares do PP e do PL em troca de apoio em votações de interesse do governo no Congresso. A denúncia - feita em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo pelo presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson (RJ) - elevou a temperatura política em Brasília ao mais alto grau desde o processo que resultou na renúncia do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
Mesmo cautelosos, analistas políticos já admitem que Lula talvez não consiga encerrar o mandato. "Acredito que a situação é rigorosamente imprevisível", avalia o cientista político Paulo Kramer, articulista do Congresso em Foco. "O presidente não está pessoalmente envolvido, mas ele precisa dar uma resposta enérgica para esses fatos", sustenta Octaciano Nogueira, cientista político e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB). "Do contrário, o previsível pode ir para o imprevisível", adverte.
Não por acaso, a primeira reação do governo às declarações de Jefferson foi tentar descolar a imagem do presidente do escândalo. "O governo não sofreu qualquer acusação (de pagamento de propina). É bom que fique claro", frisou o ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, para, em seguida, ressaltar que o presidente teria pedido a ele que averiguasse o relato feito "de passagem e de forma genérica" por Jefferson. A comprovação de uma eventual omissão de Lula poderia implicar a abertura de um processo por crime de responsabilidade, que, por sua vez, poderia resultar num pedido de impeachment.
Mas, como o pagamento da mesada era supostamente feito para apoiar votações do governo, é difícil evitar que o episódio respingue no presidente, avaliam os analistas políticos. "Muitas pessoas na Câmara sabiam de boatos de pagamento mensalão", adverte Octaciano.
A declaração do deputado Miro Teixeira (PT-RJ) de que Jefferson teria outras revelações a fazer torna ainda mais imprevisível o futuro da crise. "Temos que começar a puxar o fio do novelo", afirmou o ex-ministro das Comunicações ao confirmar que o petebista estaria guardando informações contra o governo como trunfo.
Na avaliação de Octaciano, esse novelo já começou a ser desvelado com Jefferson. "Agora temos uma testemunha para ouvir", afirma o cientista político, para quem, "se ocorrer o imprevisível" - uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) ampla e que investigue as denúncias de "mensalão" -, o presidente pode ser forçado, em último caso, a renunciar ao cargo. "A gravidade é que, quando soube do caso, o presidente não tomou as medidas necessárias para acabar com a prática", afirma o professor, ao se referir à possibilidade de Lula ser denunciado por crime de responsabilidade, conforme o andamento das investigações.
Collor, não
O momento atual é tão delicado que a própria oposição está evitando jogar lenha na fogueira. Ontem, os líderes do PSDB no Congresso apelaram ao PFL - até então mais incisivo nas cobranças ao governo - para que baixe o tom das críticas. A solicitação foi acatada sob um forte argumento: não interessa à estabilidade das instituições políticas brasileiras transformar Lula (logo ele, o primeiro operário eleito presidente no país) em um novo Collor. Daí a prudência que têm demonstrado importantes líderes oposicionistas. Eles querem ver o governo fraco nas eleições de 2006, mas não a ponto de ser incapaz de chegar até o fim do mandato.
Com a experiência de quem acompanha o dia-a-dia do Congresso há mais de 20 anos, o diretor do Departamento Intersindical de Assessoramento Parlamentar (Diap), Antonio Augusto Queiroz, observa que a posição do governo ainda é de defensiva. "Mas achar que (o governo) vai acabar é um exagero", afirma. "O que está em curso é uma orientação, que não sei perceber de onde vem, de desconstruir a imagem do PT ético", analisa Queiroz. "Essa denúncia do Roberto Jefferson, seja lá qual for a sua repercussão, vai igualar o PT aos demais partidos", prevê.
Por enquanto, afirma Queiroz, não há evidências que sustentem a incriminação do presidente por crime de responsabilidade ou de prevaricação. "Mas, se comprovada (a omissão) com as investigações de uma CPI, não terá como não incriminá-lo", reconhece.
"A disposição do Congresso é de investigar tudo no governo, doa quem doer", observa Paulo Kramer. "A precipitação dos acontecimentos pode levar o presidente, caso ele não dê os esclarecimentos devidos, a uma saída que é o impeachment", adverte o cientista político.
Segundo ele, o atual momento político lembra o escândalo que culminou na CPI do Orçamento (1993-94). Há 12 anos, um funcionário da Comissão Mista de Orçamento denunciou à revista Veja a existência de um esquema de fraudes no Orçamento Geral da União feito por parlamentares. "A partir de uma denúncia de um funcionário, apurou-se o envolvimento e a cassação de parlamentares no caso", afirmou.
Ao todo, 43 congressistas, inclusive o próprio Jefferson, e três governadores foram investigados, sob a suspeita de terem recebido propinas de empreiteiras para incluir emendas de interesse das construtoras no Orçamento da União. Ao fim das investigações, seis deputados foram cassados; outros quatro renunciaram ao mandato. As denúncias, no entanto, não resvalaram no Executivo.
O maior receio do governo, segundo Kramer, é de que a voz das ruas comece a se manifestar contra Lula. É que ela poderia sugestionar o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), atualmente um dos principais aliados do governo no Congresso. "Ele (Renan) não fará nada que a opinião pública não esteja pedindo", sustenta Kramer. "Se a voz das ruas quiser, Renan não ficará publicamente quieto", avalia o cientista político.