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Boteco Exclusão - O primeiro dia de aula

Congresso em Foco

24/2/2009 | Atualizado às 6:47

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As efemérides de fevereiro, tipo Carnaval e volta à escola, detonaram o primeiro texto do Boteco Exclusão, uma idéia que passei para meu editor, Sylvio Costa, como "cenas explícitas de literatura & outras garatujas inconfessáveis" que, excepcionalmente, em edição extraordinária – conforme a porra da inspiração, sempre tão incerta, meu saco – perpetraríamos, eu e Mirisola, em parceria.

A primeira regra do Boteco Exclusão é incluir escritores de primeira, a segunda regra do Boteco Exclusão é excluir escritores de segunda, a terceira regra do Boteco Exclusão é excluir os de terceira, a quarta e por aí vamos, a coisa é rigorosamente matemática.

Era para termos começado com os anos 80, quer dizer, com o texto número dois pois seria a minha versão contrapontística aos anos 80 dele,o texto um. Bom, então voltando às efemérides lá em cima, Carná, volta à escola, o Boteco abre no (segura essa, Marcelo!):

Primeiro dia de aula

Saia marrom, camisa bege, meias três quartos de lã, mocassins com sola de borracha, trança loura até a cintura, arrematada por um laço de seda. Idos de fevereiro, final dum verão impiedoso, mas Júlia tremia.

A aula começaria às 13h30. Ao meio-dia almoçaram ouvindo A Parada de Sucessos, cujo prefixo St.Louis Blues a orquestra de Glenn Miller desfigurava num arranjo estupidamente marcial, o locutor mandando sua saudação "Para os céus do Brasil!",sorriso irônico do meu pai: persistiam esses cacoetes do após-guerra?

Saíram. Álvaro e Júlia na frente, Vivien, minha mãe, com Amanda no colo, na retaguarda. As lavadeiras de Portugal zumbindo estupidamente em seus ouvidos, Júlia se esforçava para acompanhar as largas passadas do pai, orgulhosa por andar ao lado dele, ocupar o lugar de Vivien, a cabeça loura roçando nos vincos impecáveis de tropical inglês, vislumbrando, mais acima, a gravata de seda azul com prendedor de ouro e madrepérola, os cabelos esticados, resplandecendo brilhantina, como os gângsteres de Chicago, Vivien resmungava que ele gastava uma fortuna no Minelli, quem seria o Minelli?

Júlia evitava-lhe os verdes olhos mareados, o sorriso condescendente, ligeiro alçar de sobrancelhas: ria dela? Parecido com Tyrone Power ou Lewis Howard em Ricardo Coração de Leão: apresse o passo, filha, não aperte tanto minha mão, ele não ia fugir. Na esquina, acariciando-lhe distraidamente os cabelos acenou para o taxi, sem transição no mesmo gesto, o bulir preguiçoso das mãos, o estalar de dedos, mergulhou no automóvel e desapareceu. Como um peixe, pensou Júlia que prosseguiu com a mãe e Amanda.

Não lembrava o trajeto, apenas o calor implacável, o uniforme pesado de suor, a expressão retorcida, paralisada no limiar do choro. Vivien: não seja boba, Júlia, ela não pudera estudar em colégio de freiras. De chupeta, Amanda também chorava.. No pátio, a madre superiora: sua filha tem cabelos lindos, qual é seu nome, meu bem?

De repente, tocou o sino. Já era o sino, o latido metálico que ecoaria diariamente nos próximos doze anos de sua vida. Agarrou-se às saias da mãe, soluçando, mas Vivien enrijecera, cerrara os lábios e se afastara sem olhar para trás, segurando Amanda que se debatia aos gritos. Medrosamente, Júlia misturou-se às outras crianças, aproximando-se com infinitos de temor e esperança. Então foi aí. Um dedo apontou seu rosto:o que é que você tem na boca?

Nascera com uma cicatriz entre a base do nariz e o lábio superior. Pais, tios, avós, primos, ninguém parecia se importar com isso. Ou apenas fingiam? Mentiam ou já estavam acostumados? Afinal não nascera assim? Por isso era mimada? Poupada? Por piedade, resignação, indiferença? Porque talvez fosse por isso que Vivien chorava em silêncio e Álvaro saía batendo a porta ou então mandava-a calar-se e beijava-a e trancavam-se no quarto por um tempo interminável, muito antes de Amanda nascer?Então era isso? Por isso?Então o problema era eu?

Cercaram-na pilhas de caretas: enojadas? Curiosas?Debochadas?Espantadas? Murmúrios, perguntas que nasciam e já morriam ao chocar-se com o cordão avermelhado da cicatriz enquanto Júlia recuava, afundava, encolhendo-se para dentro dum limite de si que até então desconhecia. Pouco a pouco, foram se afastando, interpondo uma zona interdita entre si e a novata, isolando-a junto à paineira, recompondo-se à distância em grupinhos cochichantes que espreitavam, que irrompiam em risinhos agudos. O espelho fora colocado, o mundo me reconhecera e selara minha sorte.

Júlia ficou só no primeiro de todos os recreios do resto de sua vida, recostada no tronco da paineira florida, soluçando como um bicho, começou a odiar primeiramente aquela paineira, uma a uma das suas flores, todos os seus odores, o vento que salgava sua boca com a poeira que se erguia em rodamoinhos agitados por pés velozes, ferozes, fugindo, correndo, saltando, batendo pegador.

Odiar o manto negro das madres perpetuamente agitado numa ameaça de vôo, o rígido toucado branco onde um crucifixo com um Cristo de prata balançava e batia e batia em corações sem resposta. Odiar e jamais esquecer os ladrilhos e corredores, sua fatigante e inextricável simetria, como estilhaços de caleidoscópio, não, como cacos da rosácea petrificada do caleidoscópio da dor.

Naquele dia compreendi que viver é um inferno. Sem espanto, sem desespero, quase com serenidade, com secreto orgulho, finalmente com perversa alegria: Júlia só teria a si mesma. De modo que estava tudo certo, estava tudo em paz. Ás cinco horas, sua mãe aguardava-a no portão.

Levou outra menina para casa.

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