A vinculação das milionárias movimentações financeiras do empresário Marcos Valério Fernandes com o financiamento de campanha eleitoral não convence a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), entidade que reúne 15 mil juízes de todo o país. Há 16 anos na magistratura, o presidente da instituição, Rodrigo Collaço, identifica na versão apresentada pelos protagonistas do maior escândalo do governo Lula uma estratégia de defesa para diminuir a pena e encobrir crimes, como os de lavagem de dinheiro, corrupção e sonegação fiscal, cuja punição é mais severa.
"O que nos preocupa é que essa opção de defesa acaba encobrindo uma situação gravíssima que é a fraude da vontade popular", alerta. Na contramão do discurso ensaiado pelos partidos políticos, Collaço isenta a atual legislação de responsabilidade pela prática do caixa dois nas campanhas e denuncia a tentativa de se banalizar a fraude do sistema eleitoral. "Não é verdadeiro que as regras atuais impedem que as campanhas sejam limpas e dentro da lei. É uma série de besteiras que se deve repudiar. O que faltou foi ética", afirma.
Em parceria com a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), a AMB promove nesta quarta-feira (15), em Brasília, um ato público contra a corrupção. Os representantes das duas entidades vão entregar um manifesto aos presidentes da Câmara, do Senado e dos tribunais superiores e ao procurador-geral da República.
Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco , Collaço cobra esclarecimentos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, isenção do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, e redefinição do foco da Justiça Eleitoral. "Não vai ser qualquer mudança de lei que vai impedir as pessoas que desejam se afastar da legalidade de continuarem infringindo a lei."
"A gente percebe claramente que essa opção de defesa (de caixa dois) está relacionada, na verdade, ao fato de que as penas para esses crimes são muito pequenas"
Congresso em Foco - Que avaliação a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) faz do agravamento da crise política que atinge o governo Lula e o Congresso Nacional? Rodrigo Collaço - A crise é de uma gravidade sem precedentes. A AMB, desde o início, tem ficado muito preocupada com essa tentativa de atenuar os delitos cometidos enfocando-se na questão eleitoral. Muitos dos acusados têm usado a estratégia de defesa de que tudo não passou de um simples caixa dois para financiar campanhas eleitorais. A gente percebe claramente que essa opção de defesa está relacionada, na verdade, ao fato de que as penas para esses crimes são muito pequenas. O que nos preocupa é que essa opção de defesa acaba encobrindo uma situação gravíssima que é a fraude da vontade popular. Embora as penas (para os crimes eleitorais) sejam pequenas, as eleições no Brasil precisam ser absolutamente limpas. Mais do que mudar o sistema eleitoral ou político, como muitos têm dito, precisamos resgatar a ética nas eleições. O atual sistema eleitoral, que precisa de pequenas alterações pontuais, é absolutamente compatível com uma eleição que pode ser feita dentro da lei, com as empresas e os cidadãos contribuindo para seus partidos e seus candidatos. Tudo isso a que estamos assistindo não pode ser visto como uma coisa normal, corriqueira ou menor. Pelo contrário. É gravíssimo que parte dessas irregularidades esteja ligada às eleições, que precisam ser sempre muito limpas.
"Nós repudiamos essa idéia de que o sistema eleitoral é que propiciou tudo isso. É uma mentira. O que faltou foi ética"
A versão de que os recursos do empresário Marcos Valério foram para caixa dois de campanha não convence os juízes? Por quê? Ela não convence por dois motivos. Primeiro, pelas provas levantadas, que já indicam, inclusive, a existência de dinheiro fora do país, o que implica infrações de outra natureza, de natureza fiscal, de natureza tributária e até de lavagem de dinheiro. Mas ela não convence principalmente pela circunstância de que é gravíssimo admitirmos que o processo eleitoral foi fraudado. Nada deve ser mais limpo, mais liso, do que o processo eleitoral. E nos deixa absolutamente preocupados essa tentativa de banalizar esse processo. Dizer: "Olha, todos os partidos fazem assim, isso é comum". Isso precisa ser repelido com toda a força pela sociedade. Primeiro, porque há partidos e candidatos que certamente fizeram a eleição dentro das regras. Segundo, porque não é verdadeiro que as regras atuais impedem que as campanhas sejam limpas e dentro da lei. É uma série de besteiras que se deve repudiar. Não vai ser qualquer mudança de lei que vai impedir as pessoas que desejam se afastar da legalidade de continuarem infringindo a lei. Nós repudiamos essa idéia de que o sistema eleitoral é que propiciou tudo isso. É uma mentira. O que faltou foi ética. Na verdade, o que há agora é uma tentativa de justificar um fato gravíssimo tentando banalizar a fraude do sistema eleitoral.
Como a AMB tem avaliado a postura do presidente Lula diante das denúncias que, cada vez mais, se aproximam do Planalto? Há possibilidade de impeachment? Achei decepcionante o discurso do presidente (feito na última sexta-feira, 12). A nossa posição é absolutamente contrária à de que foram cometidos alguns deslizes também praticados por outros partidos. Não concordamos com essa argumentação. A população brasileira esperava um esclarecimento cabal, com detalhes sobre o que aconteceu. Os esclarecimentos não foram dados e as suspeitas que existem em relação às contas do partido, às contas que moveram o processo eleitoral permanecem absolutamente as mesmas. E por isso, sem dúvida alguma, as investigações precisam continuar, precisam ser aprofundadas e, para nós, do Judiciário, a governabilidade só se obtém com o cumprimento das leis. E o cumprimento do nosso sistema político, do nosso sistema de leis, inclui a hipótese da abertura de processo de impedimento do presidente da República.
"A única saída para essa crise, mais do que convocar o Conselho da República ou alterar leis, é a verdade"
Que providência imediata o presidente poderia tomar? Convocar, por exemplo, o Conselho da República? A única saída para essa crise, mais do que convocar o Conselho da República ou alterar leis, é a verdade. E ela precisa ser colocada à população, para a sociedade, que tem o direito de saber o que houve. Fora da verdade, eu não vejo nenhuma solução para a crise. Seriam apenas medidas paliativas, de tentativa de sobrevivência política.
Os partidos políticos e os parlamentares têm responsabilizado a legislação eleitoral pela prática comum de caixa dois nas campanhas eleitorais. O que poderia ser mudado em termos de lei? Tenho visto como muito positivas as idéias para baratear as campanhas eleitorais. A campanha eleitoral assumiu custos realmente muito amplos, em termos de showmícios , produções muito sofisticadas de propaganda. Podemos evoluir também na questão da fidelidade partidária. Nós observamos que uma parte dessa corrupção foi motivada pelo troca-troca de partidos. É preciso que estabeleçamos uma regra em que o mandato pertença ao partido e não ao candidato. Acho que isso seria muito conveniente. Embora não seja um assunto exclusivamente eleitoral, outro problema atual é a prática da renúncia para a manutenção de direitos políticos. Essa é uma outra alteração a ser feita. Mas a grande modificação que a AMB entende que precisa ser feita é a do procedimento ético. O processo eleitoral precisa ser encarado como um processo ético. As empresas e os cidadãos podem doar e os partidos podem declarar o que receberam. O que acontece é que há interesses obscuros e nenhuma transformação legislativa deve ser feita para abrigar essas pretensões obscuras.
"Ninguém tinha, no país, consciência da envergadura desse esquema de corrupção ligado às eleições. A partir dessas revelações, a Justiça Eleitoral vai ter que redirecionar a sua ação"
Os valores declarados pelos partidos e os candidatos à Justiça Eleitoral costumam ser muito baixos diante da estrutura que se monta para uma campanha. Essa desproporção - entre o que se gasta e o que se declara - não deveria ter gerado desconfiança na Justiça Eleitoral? Nitidamente, ninguém tinha, no país, consciência da envergadura desse esquema de corrupção ligado às eleições. A partir dessas revelações, a Justiça Eleitoral vai ter que redirecionar a sua ação. Nós, que evoluímos muito na urna eletrônica, na captação e na contagem de votos, teremos que deslocar, dentro do que foi revelado, o nosso foco para a repressão ao abuso do poder econômico. Nesse sentido, a AMB pretende formular várias propostas.
Quais, por exemplo? Que se coloquem à disposição de juízes de todo o Brasil pessoas, em cada localidade, com capacidade de avaliar custos de propaganda eleitoral na televisão, no rádio e nos outdoors . E, nesse caso, sempre que a Justiça Eleitoral se deparar, assessorada por um perito, com valores contraditórios e incompatíveis, caberá uma análise detalhada dessas prestações de conta.
A Justiça Eleitoral tem sua parcela de responsabilidade pelo descontrole das irregularidades cometidas? A Justiça Eleitoral agora vai ter um novo foco. Nas últimas eleições, ela já mostrou um rigor muito grande. Nós tivemos um número inédito de prefeitos cassados e parlamentares também que foram processados por abuso de poder econômico nas eleições. Essa já era uma atribuição que vinha crescendo dentro na Justiça Eleitoral brasileira. E que agora parece que precisa ser enfrentada com caráter de urgência. É preciso aparelhá-la em todo o país, dando estrutura principalmente aos juízes das diversas zonas eleitorais do país que atuam sem nenhum apoio, sem nenhuma contribuição, sem nenhuma condição técnica para essa apuração. Esse rigor, que já vem sendo observado na Justiça Eleitoral, precisa ser aprofundado. Acredito que não havia meios, até então, para que fizéssemos uma fiscalização para coibir uma prática de tão larga escala que surpreendeu toda a nação.
"É importante que o Judiciário esteja bem distante das paixões e das lutas políticas para poder exercer, com absoluta isenção, o papel que lhe cabe nessa crise, que não é o de patrocinar nenhum acordo, mas fazer cumprir com rigor a legislação brasileira"
Na avaliação do senhor, que papel cabe ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, na solução dessa crise? É preciso haver uma aproximação do chefe do Judiciário com o chefe do Executivo? Eu acho que não. O Judiciário assegura a governabilidade exercendo o seu papel, que é o de julgar, com isenção e distanciamento dos interesses partidários, todas as questões colocadas à sua apreciação. Uma parte dessas questões que estão sendo levantadas tem natureza constitucional e pode passar pelo Supremo Tribunal Federal. É importante que o Judiciário esteja bem distante das paixões e das lutas políticas para poder exercer, com absoluta isenção, o papel que lhe cabe nessa crise, que não é o de patrocinar nenhum acordo, mas fazer cumprir com rigor a legislação brasileira.
"Esse discurso de que a legislação eleitoral propiciou todo esse caos não pode ser aceito e vai ser repudiado por todos nós"
Que tipo de manifestação a Associação dos Magistrados Brasileiros pretende fazer pela moralização na política? A AMB vai realizar, junto com a Associação Nacional do Ministério Público, no próximo dia 17, um ato contra a corrupção, pela punição e contra qualquer tipo de acordo. Esse discurso de que a legislação eleitoral propiciou todo esse caos não pode ser aceito e vai ser repudiado por todos nós. Queremos que as apurações sigam, que as punições sejam exemplares e que essa crise lamentável que se abateu sobre o país se transforme numa grande oportunidade para nós evoluirmos em termos institucionais, em termos de ética na política brasileira.
O senhor teme que, com o agravamento da crise, o país possa ficar suscetível a uma convulsão social? Não temo por nenhuma convulsão social, porque me parece que tudo pode ser resolvido dentro da legalidade, desde a manutenção até o afastamento de qualquer autoridade pública do Brasil. As instituições, embora em crise - e o Judiciário não está em crise - terão todas as condições de superar essa crise, dentro da lei, e com observância da democracia no Estado brasileiro. (Colaborou Diego Moraes)
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