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Representação política
6/11/2025 11:00
A política brasileira carrega, historicamente, uma marca de desigualdade: a sub representação feminina nos espaços de poder.
Para enfrentar essa distorção, o legislador instituiu, no artigo 10, §3º, da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), a chamada cota de gênero, que obriga os partidos a preencherem no mínimo 30% e no máximo 70% das candidaturas para cada gênero em eleições proporcionais (Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais).
Essa norma não é mera formalidade estatística. É uma ação afirmativa de natureza constitucional, inspirada nos princípios da isonomia e da igualdade material (art. 5º, I, da Constituição Federal), e voltada a corrigir uma assimetria histórica: o afastamento sistemático das mulheres da arena política e da tomada de decisões públicas.
Mas essa regra legal não é de hoje, e mesmo assim, a participação feminina em eleições continua sendo suprimida. Como e por quê?
Cumpre destacar, ainda, que a sub-representação feminina na política não pode ser dissociada dos condicionamentos históricos e culturais que moldaram o exercício do poder no país. Persistem, em nossa estrutura social, padrões simbólicos e estereótipos de gênero que legitimam a desigual distribuição de espaços de decisão e limitam o protagonismo político das mulheres (Menuci; Nielsson, 2019).
A fraude mascarada de cumprimento formal
Nos últimos anos, a Justiça Eleitoral tem se deparado com um fenômeno recorrente: o uso de candidaturas femininas fictícias, conhecidas popularmente como "candidatas laranjas". São registros feitos apenas para cumprir a exigência legal, sem campanha, sem votos, sem movimentação financeira e, muitas vezes, sem sequer o conhecimento pleno da candidata sobre sua inscrição.
Em cidades menores no interior do Brasil, em regiões onde ainda operam o coronelismo político e o patrimonialismo partidário, é comum os dirigentes e coordenadores de campanha ou os próprios candidatos do gênero masculino indicarem suas esposas, filhas ou netas para se filiarem e registrarem candidaturas fictícias apenas para validarem a suas próprias candidaturas.
A fraude à cota de gênero é, em essência, uma expressão do machismo estrutural que ainda domina a política brasileira. Em muitos municípios, partidos são controlados por líderes locais, os chamados "donos de partido", que determinam candidaturas e definem os recursos de campanha.
Nesse contexto, as mulheres são frequentemente usadas como instrumentos formais para cumprir a lei, enquanto o poder real permanece concentrado nas mãos de poucos homens. Essa distorção perpetua a exclusão política feminina e esvazia o sentido democrático da cota.
Esse fenômeno está diretamente relacionado às práticas de patrimonialismo partidário que atravessam o sistema político brasileiro. Muitos diretórios locais operam como extensões de interesses pessoais ou familiares, confundindo o espaço público com o privado. O partido deixa de ser um instrumento de representação política para se tornar um meio de manutenção de poder, utilizado para garantir cargos, verbas e influência.
As candidaturas femininas, quando lançadas apenas para atender formalidades legais, revelam o quanto o poder partidário ainda está enraizado em estruturas personalistas, que resistem à renovação e à inclusão de novas vozes.
Mulheres trans e a leitura inclusiva da cota
A interpretação contemporânea do TSE tem reconhecido que a cota deve ser compreendida sob a ótica do gênero, e não apenas do sexo biológico. Assim, mulheres trans integram a cota feminina, e homens trans a masculina, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade substancial (arts. 1º, III, e 5º da Constituição).
Essa leitura amplia o alcance democrático da norma e reafirma o compromisso do Direito Eleitoral com a inclusão e o respeito à diversidade.
E neste sentido, colocando em prática, o Brasil elegeu pela primeira vez na história da Câmara dos Deputados, duas deputadas trans: Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), que somadas às demais mulheres eleitas em 2022 representaram 17,7% das vagas (Agência Câmara de Notícias, 2022), um ligeiro aumento percentual se comparado com eleições anteriores.
Ferramentas da Justiça Eleitoral
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) consolidou o entendimento de que a fraude à cota de gênero contamina toda a chapa proporcional, resultando na cassação de registros e diplomas, anulação de votos e inelegibilidade dos responsáveis.
Para os casos das eleições de 2020, o paradigmático caso de Jacobina/BA, julgado pelo TSE, em 10/05/2022 (TSE, 2022), passou a servir de precedente para a apreciação de ações sobre o tema, até 2024.
Isto porque, em 2024, a Súmula nº 73 do TSE fixou parâmetros objetivos para caracterizar a fraude, como: inexistência de atos de campanha, ausência de material eleitoral, votação inexpressiva, falta de movimentação financeira ou vínculos diretos com candidatos beneficiados pela irregularidade.
Tal súmula, veio coroar o entendimento jurisprudencial e demonstrou o empenho da Justiça Eleitoral no enfrentamento dessas fraudes, utilizando instrumentos como: a análise rigorosa das prestações de contas, com especial atenção ao uso de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha; cassação coletiva de chapas proporcionais; e responsabilização de dirigentes partidários por práticas dolosas, entre outros.
Recentemente, observamos inúmeros julgados neste sentido, graças a pacificação trazida à baila pela Súmula 73, como por exemplo o recente julgado do TRE/SP no REl: 06011164520246260025 da cidade de Brejo Alegre/SP (TRE, 2025).
Por sua vez, no corrente outubro de 2025, o TRE-SP decidiu, de forma unânime, pela existência de fraude no registro das candidaturas proporcionais do partido Republicanos em Miguelópolis, nas Eleições de 2024 (TRE, 2025). Com base nesse entendimento, a Corte Eleitoral determinou a invalidação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) e a consequente nulidade dos votos recebidos pelos integrantes da sigla no referido pleito.
Essas medidas não apenas asseguram a lisura do processo eleitoral, mas reafirmam a função pedagógica da Justiça Eleitoral na defesa da igualdade e da representatividade política.
No entanto, embora a repressão seja necessária, a verdadeira efetividade da cota depende de uma transformação estrutural na cultura política e na dinâmica dos partidos.
É fundamental que sejam implementadas políticas afirmativas complementares, tais como programas de formação política e liderança para mulheres; democratização da governança interna dos partidos; e fiscalização constante sobre o uso dos recursos públicos destinados à promoção da participação feminina.
E mais, é de se repensar a atual legislação partidária (Lei nº 9.096/1995 - Lei dos Partidos Políticos), que não prevê formas inclusivas de composição dos diretórios municipais e comissões provisórias, como requisito obrigatório.
Sem esses mecanismos, a cota continuará sendo um número simbólico, e não uma ferramenta de transformação social.
Diretórios inexistentes e comissões provisórias eternas
As estruturas partidárias brasileiras, especialmente em sua base municipal, ainda reproduzem um modelo de organização profundamente centralizado, e como exposto acima, patrimonialista, o que favorece um cenário discriminatório e facilitador de fraudes.
Em grande parte dos municípios, os diretórios locais foram substituídos ou nunca chegaram a se consolidar de forma permanente, sendo controlados por comissões provisórias que, embora concebidas como instrumentos temporários de gestão partidária, tornaram-se mecanismos permanentes de controle político.
Essas comissões, quase sempre nomeadas "de cima para baixo" pelas instâncias estaduais ou nacionais, acabam dominadas por políticos de carreira, que utilizam o partido como extensão de seus interesses pessoais e eleitorais, bloqueando a renovação interna e dificultando o surgimento de novas lideranças. Trata-se de uma expressão contemporânea do patrimonialismo partidário, em que o espaço político é apropriado como propriedade privada, e não como esfera pública de deliberação democrática.
O resultado é um sistema em que as legendas, em vez de cumprir sua função essencial de mediação entre sociedade e Estado, tornam-se feudos políticos administrados por grupos que se perpetuam no poder, perpetuando também práticas clientelistas e personalistas que corroem a vitalidade da democracia representativa, afastando neste cenário, as mulheres de participarem da vida ativa dos partidos e consequentemente da vida política do município.
A defesa da constituição de diretórios municipais autônomos e livres de indicações coronelistas, e com prazo de duração definida, é tema de intenso debate, tendo inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF) pacificado a questão em maio deste ano de 2025, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.875, proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), definindo que os diretórios provisórios dos partidos políticos devem ter duração máxima de quatro anos, sem possibilidade de prorrogação.
O STF definiu ainda, que o não cumprimento do prazo resultará na suspensão de repasses dos fundos partidário e eleitoral até a regularização, sem a possibilidade do recebimento de retroativos (STF, 2025).
Esse é um passo importante, mas ainda longe do ideal para a questão da representatividade, haja vista a necessidade emergente de implementação de cotas de gênero também na composição dos diretórios.
Conclusão
A fraude à cota de gênero é mais do que um desvio eleitoral: é um ataque direto à democracia e à igualdade. Ao manipular o instrumento criado para corrigir desigualdades históricas, perpetua-se o mesmo sistema de exclusão que impede a voz feminina de ecoar nos espaços de poder.
Por sua vez, uma análise simples dos dados das eleições de 2024 (TSE, 2024), revelam que a distância entre o número de candidatas e o de eleitas ainda persiste, evidenciando a limitada efetividade da política de cotas para promover a inclusão feminina.
E conforme aqui exposto, as razões são diversas e vão desde a estrutura de coronelismo político que ainda marca o interior brasileiro, onde o controle pessoal e familiar sobre candidaturas e recursos bloqueia a renovação e restringe a inserção real das mulheres na política, perpetuando a desigualdade que as cotas buscam corrigir, até a falta de apoio dos partidos, financiamento insuficiente, ausência de políticas que permitam a participação plena das mulheres e barreiras sociais e culturais que reforçam papéis tradicionais de gênero.
Combater a fraude à cota de gênero exige, assim, enfrentar não só a desigualdade de gênero, mas também a apropriação privada das estruturas partidárias - um dos maiores entraves à democracia brasileira contemporânea.
A imposição de cota de gênero na composição dos diretórios partidários em todos os seus níveis da federação, é uma missão importante para o alinhamento da pauta da inclusão de gênero, pois, com estruturas partidárias mais igualitárias a probabilidade de termos menos fraudes eleitorais, que em sua esmagadora maioria são praticadas por dirigentes e candidatos do gênero masculino.
A Justiça Eleitoral tem cumprido um papel firme nesse combate. Mas é preciso que os partidos políticos, a sociedade civil organizada e as instituições democráticas assumam, conjuntamente, o compromisso de transformar a política em um espaço verdadeiramente plural, inclusivo e igualitário.
Somente assim, a cota de gênero deixará de ser uma exigência formal e passará a ser um instrumento vivo de democracia substantiva no Brasil.
Referências
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, I.
TSE, Recurso Especial Eleitoral nº 24342, Rel . Min. Henrique Neves da Silva, Publicação: DJE - Data 11/10/2016.
TRE-SP - REl: 06011164520246260025 Brejo Alegre/SP 060111645. Relator.: Des. Rogério Cury, Data de Julgamento: 10/07/2025. Data de Publicação: DJE 138, data 14/07/2025.
TER-SP - RE 0600318-20.2024.6.26.0208. Miguelópolis/SP. Relator: Regis de Castilho. Data de Julgamento: 02/10/2025. Data de Publicação: DJE data 04/10/2025.
MENUCI, Julia Monfardini; NIELSSON, Joice Graciele. A efetividade da lei de cotas de gênero e o alargamento da participação feminina na política com vistas às eleições de 2018. Revista de Direitos Humanos e Efetividade, Belém, v. 5, n. 2, p. 1-21, 2019.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. SIG Eleição - Sistema de Informações de Eleições. 2024. Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig eleicao/home?session=317146002481132.
Câmara dos Deputados - Bancada feminina aumenta 18,2% e tem duas representantes trans - Agência Câmara de Notícias -
https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e tem-2-representantes-trans. Acesso em 30/10/2025.
STF - ADI 5.875 - Relator: Ministro Luiz Fux. Votação Unânime. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do julgamento: 28/05/2025.
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