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Igualdade racial
24/11/2025 15:29
O serviço público brasileiro carrega um paradoxo estrutural que precisa ser encarado de frente. Somos um país em que mais da metade da população se autodeclara negra, 55,5%, segundo o IBGE; mas essa representatividade desaparece à medida que se sobe na hierarquia do Estado. O que se observa, portanto, é uma máquina pública que, embora sirva a um país majoritariamente negro, ainda reflete uma lógica de poder historicamente excludente.
Os números confirmam essa distorção. Segundo o Painel Estatístico de Pessoal (PEP) em setembro de 2023, 40,5% dos servidores federais se autodeclaravam pretos ou pardos. À primeira vista, o dado pode sugerir avanço, especialmente quando comparado aos 17% registrados no início dos anos 2000. No entanto, a leitura mais profunda revela um quadro de segregação funcional e econômica. Servidores negros recebem, em média, 21% menos que seus colegas brancos, mesmo possuindo tempo médio de serviço 8% maior. Essa combinação de maior experiência e menor remuneração evidencia que o racismo institucional opera não apenas nas portas de entrada, mas sobretudo nos mecanismos de progressão e reconhecimento dentro da estrutura estatal.
A Lei nº 12.990/2014, que reservou 20% das vagas para pessoas negras em concursos públicos, foi um passo histórico, mas insuficiente. Ela democratizou o ingresso, mas não rompeu o chamado "teto de vidro racial", que impede a ascensão de servidores negros aos cargos de chefia e direção. O resultado é uma elite burocrática majoritariamente branca, desconectada do perfil da população que o Estado deve representar e servir. Essa desconexão tem efeitos concretos sobre a qualidade das políticas públicas, que deixam de incorporar as perspectivas e necessidades das maiorias sociais.
A ausência de negros e negras na alta gestão pública contribui para a reprodução de um ciclo perverso: o de políticas desenhadas, implementadas e avaliadas sem a vivência de quem sente os efeitos da desigualdade racial. É assim que o racismo institucional se manifesta - não necessariamente em atitudes individuais de discriminação, mas em estruturas e práticas que perpetuam privilégios e limitam o alcance da justiça social. Quando a diversidade é vista como exceção, e não como norma, as promessas constitucionais de igualdade substancial não se concretizam e o próprio Estado falha em sua missão democrática.
O recente Decreto nº 11.443, que determina percentual mínimo de ocupação de cargos comissionados por pessoas negras, representa um avanço simbólico e operacional. No mesmo sentido, o programa LideraGOV, coordenado pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos e pela Enap, ofereceu treinamento de gestão para um grupo qualificado de servidores negros. Ao formar essas lideranças, o Estado reconhece que representatividade não é apenas questão de justiça, mas também de eficiência: quanto mais diversa for a equipe de formuladores de políticas públicas, mais responsivo e eficaz será o governo.
A ampliação da Lei de Cotas para 30%, sancionada recentemente, reforça o compromisso de corrigir a sub-representação no ingresso. Mas o verdadeiro desafio agora é garantir equidade na trajetória. A pauta deve garantir que "quem entra" é realmente sujeito de direito e não "afroconvenientes" que roubam vagas da população negra. Também deve garantir acesso para o "quem sobe". Para isso, o serviço público precisa adotar políticas afirmativas internas que incentivem a ascensão e assegurem igualdade de oportunidades na ocupação de cargos estratégicos.
Iniciativas de mentoria, capacitação e garantia de participação são mecanismos eficazes para romper as barreiras invisíveis que mantêm o poder concentrado. A criação de redes de apoio e a valorização do mérito com base na diversidade são condições indispensáveis para romper o ciclo de exclusão. A equidade não se alcança apenas com o ingresso, mas com a permanência digna, o reconhecimento e a liderança.
O serviço público federal vive um momento decisivo. A correção das desigualdades raciais não é um gesto de benevolência institucional, mas um imperativo democrático. Um Estado que não reflete o seu povo em sua estrutura de poder não pode se considerar plenamente republicano. O combate ao racismo institucional exige um compromisso transversal, sustentado por dados, transparência e vontade política.
O país é majoritariamente negro. A força de trabalho que executa, formula e avalia as políticas públicas precisa refletir essa realidade. Somente quando o Estado brasileiro reconhecer, promover e valorizar a diversidade em todos os níveis da administração, teremos uma máquina pública legitimamente democrática, eficiente e representativa. O futuro da gestão pública passa, inevitavelmente, pela equidade racial. Sem ela, não há justiça, nem progresso possível.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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