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Judiciário
21/11/2025 12:00
O Brasil aprendeu cedo a conviver com a desigualdade como se fosse parte da paisagem. A cada esquina, a promessa constitucional de igualdade jaz ao lado de uma realidade que insiste em excluir. Entre a pompa dos direitos inscritos na Carta de 1988 e a vida concreta dos vulneráveis abre-se um abismo que a Defensoria Pública da União foi criada para reduzir. No entanto, a cada corte orçamentário, esse abismo se alarga.
A Constituição foi clara: o Estado deve prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que não têm condições de arcar com os custos da justiça. Mas o que é um direito fundamental sem braços e sem voz para defendê-lo? O país que assegura formalmente o acesso à justiça é o mesmo que, na prática, mantém 62 milhões de brasileiros sem cobertura da Defensoria Pública em suas circunscrições. Trata-se de uma ironia dolorosa.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a Defensoria é instituição essencial à função jurisdicional. Não se trata de benevolência estatal, mas de dever constitucional. E, ainda assim, desde 2016, primeiro com a rigidez do teto de gastos e agora sob a roupagem de um novo regime fiscal, a Defensoria Pública da União foi empurrada para o canto, obrigada a fazer milagres com migalhas.
Nas salas do poder, a matemática é fria: despesas limitadas, percentuais fixados, metas de resultado primário. Mas, nos rincões do país, essa matemática tem rosto: o trabalhador que não consegue requerer auxílio por incapacidade temporária; a mãe que não obtém remédio para o filho; o preso que aguarda indefinidamente uma resposta judicial. O congelamento orçamentário não corta apenas cifras, corta destinos.
A Emenda Constitucional nº 80 de 2014 estabeleceu prazo: em oito anos, defensores deveriam estar presentes em todas as unidades jurisdicionais do país. O prazo venceu. O comando foi ignorado. Se o Judiciário, o Ministério Público e a Advocacia da União estão instalados em todos os cantos, por que se admite que a Defensoria não esteja? A resposta é simples e cruel: porque serve aos pobres, e o pobre segue sendo tratado como cidadão de segunda categoria.
É justamente nesse contexto que ganha relevo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7792, proposta pela combativa Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (ANADEF), que pleiteia uma reparação histórica: que o Supremo Tribunal Federal reconheça, ao interpretar o artigo 3º, V, e § 1º, da Lei Complementar nº 200/2023, que os recursos necessários à implantação da Defensoria Pública da União em todas as unidades jurisdicionais - como ordena o artigo 98, § 1º, do ADCT - não sejam submetidos ao limite individualizado de despesas primárias. Trata-se de garantir que o cronograma constitucional de oito anos possa, ainda que de forma retardada, ser cumprido, afastando o obstáculo orçamentário que tem perpetuado a exclusão dos mais vulneráveis do acesso efetivo à Justiça.
Não se trata, portanto, de uma discussão acadêmica sobre modelos de Estado. Está em jogo algo visceral: negar à Defensoria os meios para existir plenamente é negar ao povo mais vulnerável o direito de ser ouvido. É perpetuar a lógica do silêncio, em que apenas quem pode pagar por advogados tem, de fato, a chave para abrir as portas da Justiça.
O argumento fiscal soa técnico, mas o efeito é humano. Congelar o crescimento da Defensoria é adiar indefinidamente a promessa de acesso universal à Justiça. É admitir que a Constituição pode ser lida com lápis, para que trechos inteiros sejam apagados quando inconvenientes ao orçamento. Essa seletividade é a mais grave forma de descumprimento constitucional: a que se naturaliza.
Quando o ministro Celso de Mello e a ministra Cármen Lúcia do Supremo perguntaram "a quem interessa enfraquecer a Defensoria Pública?" durante o julgamento da ADI 3943, a pergunta ecoou como um lembrete incômodo. A quem interessa? Aos que lucram com a manutenção das desigualdades, aos que preferem que o pobre não litigue, não questione, não reivindique. Ao reduzir a Defensoria, o Estado não se economiza: perpetua a exclusão.
O que está em jogo não é apenas a efetividade de um artigo da Constituição, mas a própria legitimidade da democracia. Um Estado que promete direitos, mas não garante instrumentos para que eles sejam exigidos, trai sua essência. O déficit da Defensoria Pública da União é, na verdade, o déficit democrático do Brasil.
Se a Constituição de 1988 nasceu para ser "uma Constituição pra valer", como se proclamava na Constituinte, não pode ser mutilada pelo cálculo fiscal. Justiça que se retarda é justiça que se nega. E, enquanto os números do orçamento continuarem a pesar mais do que as vidas invisíveis, a Defensoria Pública da União será o lembrete de que nossa democracia ainda é promessa por cumprir.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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