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Transparência
25/11/2025 13:00
Quando o orçamento sai da luz
O ponto de partida é simples de explicar, mas devastador nas consequências.
As chamadas emendas de relator-geral (RP 9) foram usadas, a partir de 2019, para criar um canal paralelo de distribuição de recursos do Orçamento Geral da União. Na teoria, o relator do orçamento sempre teve a função de ajustar a peça orçamentária: corrigir erros, acomodar consensos, ajustar parâmetros. Na prática, esse papel foi "turbinado" até virar uma máquina de alocação bilionária fora do holofote público.
Por muito tempo, a engrenagem funcionou assim:
Em vez de um orçamento debatido à luz do dia, com base em dados e prioridades nacionais, formou-se um circuito de poder em que quem controlava as chaves das RP 9 controlava também o acesso a recursos estratégicos.
Da peça técnica à moeda de troca política
Orçamento, em qualquer democracia, deveria ser sinônimo de planejamento de políticas públicas. No Brasil do orçamento secreto, ele virou também moeda de troca política de altíssimo valor.
Investigação jornalística, relatórios de organizações da sociedade civil e análises técnicas passaram a mostrar um quadro recorrente:
Não se trata apenas de suspeita moral. Quando bilhões são distribuídos sem critério técnico, o efeito é direto sobre a vida das pessoas:
É por isso que setores da sociedade passaram a classificar o orçamento secreto como "esquema de corrupção institucionalizada": mesmo com aparência legal, a engrenagem distorce o sentido republicano do orçamento, que deveria servir ao conjunto da população.
Planejamento às cegas, desigualdade reforçada
Outro efeito corrosivo do orçamento secreto está no planejamento do Estado.
Na teoria, a Constituição de 1988 e a legislação orçamentária exigem que o orçamento dialogue com planos de médio e longo prazo: Plano Plurianual, metas fiscais, diretrizes setoriais. Na prática, as RP 9 criaram uma espécie de "orçamento dentro do orçamento" - um bloco bilionário de recursos guiado mais por negociações políticas do que por diagnósticos de necessidade.
Relatórios mostraram:
Quando isso ocorre, o efeito é paradoxal: um instrumento que, no discurso, prometia "descentralizar" e reduzir desigualdades acabou, na prática, institucionalizando novas formas de privilégio, alimentando um mapa orçamentário em que o CEP político pesa mais do que o CEP social.
STF reage: "assim, não há Constituição que resista"
O ponto de inflexão institucional veio em dezembro de 2022. Após sucessivas reportagens, pressões de entidades e questionamentos de partidos, o Supremo Tribunal Federal julgou as práticas associadas ao orçamento secreto incompatíveis com a Constituição, especialmente com os princípios da publicidade, da moralidade e da impessoalidade.
Na prática, o STF:
O recado foi claro: não existe democracia orçamentária em ambiente de segredo.
A decisão do STF não resolve todos os problemas, mas responde à pergunta central: um mecanismo que movimenta bilhões na penumbra é incompatível com o pacto democrático de 1988.
O escândalo insepulto: emendas paralelas e a tentativa de reedição
Se o STF colocou um freio nas RP 9, o jogo político não ficou parado.
Relatórios recentes da Transparência Brasil e de outros observatórios apontam a criação e o fortalecimento de "emendas paralelas", em especial as chamadas emendas de comissão, que somam cerca de R$ 8,5 bilhões no orçamento de 2025 e repetem traços centrais do velho esquema: baixa transparência, critérios nebulosos e forte componente político.
A expressão cunhada por análises recentes, o "escândalo insepulto", descreve bem a situação: o rótulo "orçamento secreto" pode ter sido enterrado, mas sua lógica insiste em reaparecer sob outros formatos.
Ministros como Flávio Dino têm alertado publicamente para o risco dessa reedição disfarçada e acionado órgãos de controle para investigar repasses suspeitos, como os realizados por meio de "emendas Pix" e transferências sem plano detalhado de trabalho.
CGU, TCU e os casos que mostram o tamanho do problema
Por trás das grandes cifras, há histórias concretas que ajudam a entender o estrago.
Auditorias da Controladoria-Geral da União (CGU) e processos no Tribunal de Contas da União (TCU) expuseram situações emblemáticas:
Esses episódios ajudam a ilustrar o ponto central: opacidade é combustível para corrupção e desperdício. Sem rastreabilidade efetiva, é difícil distinguir onde termina a política legítima e começa a captura privada do orçamento.
Sociedade civil e imprensa: sem eles, nada disso viria à tona
Nenhuma dessas mudanças teria acontecido sem a ação combinada de imprensa, organizações da sociedade civil e pesquisadores.
Foram jornalistas de dados, repórteres investigativos, ONGs e centros de pesquisa que:
Esse movimento revela uma lição importante: transparência não é só norma jurídica, é prática social. Não basta que a lei determine publicidade. É preciso que alguém - imprensa, sociedade civil, cidadãos organizados - vá atrás dos dados, traduza a informação e devolva isso à população em linguagem acessível.
Democracia sob teste: o que está em jogo no pós-orçamento secreto
O debate sobre o orçamento secreto já passou da fase de discutir se ele era "bom" ou "ruim". O STF respondeu: era inconstitucional. A questão agora é outra: o Brasil será capaz de impedir que o modelo volte, repaginado, pelos flancos do sistema de emendas?
O país vive, hoje, uma situação de "guerra de posição" dentro do orçamento: de um lado, decisões do STF, recomendações do TCU, auditorias da CGU e relatórios de entidades exigindo rastreabilidade e critérios; de outro, a pressão de grupos políticos que buscam preservar margens de manobra para negociar verbas e sustentar coalizões.
Nesse contexto, defender transparência não é retórica moralista. É defender a própria ideia de orçamento como bem público, e não como espólio de guerra entre facções parlamentares.
Quando o cidadão olha para seus impostos e enxerga um sistema em que bilhões circulam sem explicação convincente, a consequência é conhecida: desconfiança generalizada, cinismo político, terreno fértil para discursos antissistema. Em outras palavras, o orçamento secreto - e suas versões "camufladas" - não é apenas um problema de governança fiscal, mas um corrosivo silencioso da fé na democracia.
Conclusão: transparência ou captura
O caso do orçamento secreto deixa uma mensagem incômoda, porém necessária.
Um país não pode se considerar plenamente democrático se aceita que parcelas significativas do seu orçamento sejam definidas em circuitos de poder pouco transparentes, orientados mais por cálculos de sobrevivência política do que por justiça social e planejamento público.
A decisão do STF foi um passo importante, mas incompleto. Para que o "fim do orçamento secreto" deixe de ser apenas manchete e se torne realidade, três frentes precisam caminhar juntas:
Regras claras: limitar, com precisão, os usos admissíveis de emendas de relator e de comissão, com critérios públicos e verificáveis.
Controle firme: CGU, TCU, Ministério Público e Judiciário com capacidade de atuar com independência, punindo desvios e corrigindo abusos.
Pressão contínua da sociedade: imprensa livre, entidades de controle social atuantes e cidadãos atentos a como cada real é arrecadado e gasto.
No fim das contas, discutir orçamento é discutir quem manda no Brasil: a lógica da coalizão de ocasião e dos acertos na penumbra, ou a lógica do interesse público, do dado aberto e da política submetida à crítica pública?
A resposta a essa pergunta não virá apenas de sentenças judiciais ou portarias técnicas. Ela dependerá da capacidade da sociedade de exigir, todos os dias, aquilo que parece óbvio, mas ainda está longe de ser garantido: um orçamento público que deixe de ser segredo e passe a ser, de fato, um espelho da soberania popular.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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