O relator da comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI) que investiga os conflitos agrários, deputado João Alfredo (PT-CE), vai comprar briga com a bancada ruralista. O confronto já tem data e local marcados: junho de 2005, no auditório do Senado onde são realizadas as reuniões do colegiado. É lá que o petista vai apresentar o relatório final com propostas para mudar a legislação e restringir as indenizações feitas pela União para a desapropriação de terras destinadas à reforma agrária.
Além dessa mudança, João Alfredo antecipou ao Congresso em Foco que vai sugerir a criação de ouvidorias agrárias nos estados como instâncias de intermediação dos conflitos entre os trabalhadores rurais sem-terra, as famílias assentadas, os proprietários rurais e o poder público. O deputado também pretende incluir no relatório alterações na legislação para impedir que os recursos destinados à reforma agrária continuem a ser retidos pelo governo para fazer caixa.
"Quero avançar em propostas legislativas que impeçam que a reforma agrária seja um grande negócio para os latifundiários. Hoje eles recebem títulos da dívida agrária, valorizados pelo mercado financeiro, que acabam sendo um prêmio e não uma punição para quem não cumpre a função social da terra", disse.
Nesta entrevista exclusiva, o relator diz que vai pedir a quebra dos sigilos bancário e fiscal das entidades ligadas aos proprietários rurais caso a comissão insista no aprofundamento das investigações sobre a vida financeira dos movimentos sociais. O deputado já admite que as divergências entre os parlamentares que defendem os interesses dos ruralistas e aqueles que apóiam os sem-terra devem inviabilizar a votação do relatório final.
João Alfredo critica o modelo de agronegócio implantado no país, que, segundo ele, traz mais malefícios do que benefícios à sociedade. "O agronegócio tem um aspecto importante, que é ser um item importante na balança comercial, respondendo por boa parte das nossas exportações, mas, do ponto de vista social, ele desemprega. Muitas vezes, oferece emprego de natureza precária, quando não usa trabalho escravo, e ainda traz problema ambiental. O agronegócio é que, na verdade, traz problemas sociais e ambientais graves para o país", afirma.
Deputado da ala esquerda do PT, João Alfredo elogia o plano de reforma agrária do governo, mas diz que as ações são tímidas e esbarram no contingenciamento de recursos. "O problema da reforma agrária do governo Lula é outro: a falta de sua execução. A falta de infra-estrutura do Incra e de recursos para as desapropriações e o contingenciamento das verbas, além dos entraves de natureza legislativa a que já me referi", afirma.
Coordenador do núcleo ambiental do PT na Câmara, o deputado é um dos principais adversários da bancada ruralista. Há dois meses, João Alfredo responsabilizou o presidente da CPMI, senador Álvaro Dias (PSDB-PR), pelo vazamento de informações bancárias sigilosas da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab), entidade vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Na época, o petista acusou o tucano de agir politicamente com a intenção de atingir o governo Lula e criminalizar as ações do MST. De acordo com os dados divulgados, a entidade movimentou R$ 30 milhões nos últimos seis anos. Um terço desse valor teria saído do Tesouro Nacional durante o governo Lula. A denúncia foi parar no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado, que examina o suposto envolvimento de Dias na divulgação das informações.
Como se vê, a CPI da Terra tem tudo para se transformar em uma espécie de CPI do Banestado II, em que presidente e relator não se entendem e o trabalho final pode ficar comprometido por conta de disputas políticas entre governo e oposição.
Congresso em Foco - A que conclusões foi possível chegar em um ano de investigações da CPI mista da Terra?
João Alfredo - A questão agrária é do tamanho do Brasil e tem o tempo da nossa história. Portanto, não são seis meses a mais ou a menos que vão garantir que possamos resolver uma questão que remonta à própria formação social, histórica, econômica e cultural do país. Há uma estrutura fundiária extremamente injusta baseada, desde a colonização até os nossos dias, na grande propriedade da terra. As nossas universidades, os nossos órgãos públicos e as diversas comissões desta Casa estão repletos de análises da questão agrária e de propostas para a sua superação. Seria cabotinice de minha parte achar que um relatório meu possa resolver o problema. Mas é possível, pelo menos, apontar saídas para dar agilidade à reforma agrária, reduzir a violência no campo e prevenir os conflitos existentes.
Como conciliar essas propostas com a divisão que existe dentro da própria CPI?
Esta CPI está marcada por duas grandes divisões, algumas, inclusive, que se encontram. Uma delas é entre governo e oposição. Outra divisão, de corte mais ideológico, distancia aqueles parlamentares que são vinculados aos interesses dos ruralistas dos que têm uma referência mais forte nos movimentos sociais de trabalhadores rurais. Quando se juntam interesses da oposição conservadora e dos ruralistas percebe-se que há uma dupla intenção nesta CPI: primeiro, atingir o governo, reclamando da ineficiência e da inoperância da reforma agrária, e, em segundo lugar, levantar dúvidas sobre os convênios realizados entre o governo e os movimentos sociais. Eles querem impedir que o governo, através dos ministérios, torne os assentamentos uma experiência bem-sucedida. Esses ruralistas estão vinculados ao modelo da grande propriedade, do agronegócio exportador e da monocultura. Um modelo que, a um só termo, traz resultados positivos do ponto de vista econômico produtivista, principalmente na balança comercial, mas que, por outro lado, é extremamente deletério no aspecto ambiental. Eles são extremamente atrasados do ponto de vista da legislação social.
"Quando se juntam interesses da oposição conservadora e dos ruralistas percebe-se que há uma dupla intenção nesta CPI: primeiro, atingir o governo, reclamando da ineficiência e da inoperância da reforma agrária, e, em segundo lugar, levantar dúvidas sobre os convênios realizados entre o governo e os movimentos sociais"
Qual o fato novo levantado por essa CPI?
Não existe fato novo nesta CPI porque não existe nada mais antigo no Brasil do que a injustiça no campo. O que quero ousar, neste relatório, é, em vez de fazer um relatório de indiciamento de pessoas, apresentar um texto que permita a maior agilização do processo da reforma agrária. Para isso, teremos de trabalhar no aspecto administrativo, impedindo que o contingenciamento de recursos para o cumprimento das metas de superávit afete a realização da reforma agrária. Vamos sugerir mecanismos que garantam o melhor aparelhamento técnico e humano do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), com a criação das ouvidorias agrárias nos estados, numa tentativa de combater a violência. Quero avançar em propostas legislativas que impeçam que a reforma agrária seja um grande negócio para os latifundiários. Hoje, eles recebem títulos da dívida agrária, valorizados pelo mercado financeiro, que acabam sendo um prêmio e não uma punição para quem não cumpre a função social da terra. Quero apresentar soluções claras para que o processo administrativo de desapropriação seja o mais ágil possível. Quero apresentar solução para que a Justiça seja mais eficiente no julgamento de processos criminais, e não mais um fator de violência quando ocorrem as reintegrações de posse.
"Hoje, eles (os latifundiários) recebem títulos da dívida agrária, valorizados pelo mercado financeiro, que acabam sendo um prêmio e não uma punição para quem não cumpre a função social da terra"
O senhor considera que, dentro da CPI, há parlamentares com a intenção de criminalizar os movimentos sociais?
Claro. Quando se quebra o sigilo das entidades ligadas aos trabalhadores e, por outro lado, se protege o das entidades ligadas aos proprietários, está muito claro esse objetivo.
A CPI deveria ter quebrado o sigilo dos dois lados?
O mínimo que se pode querer de uma CPMI é que ela não tenha dois pesos e duas medidas e que tenha isenção. Penso que não é objeto da comissão analisar contas desses movimentos. No entanto, se a CPI resolve analisar a situação financeira e fiscal das entidades ligadas aos trabalhadores, deve fazer o mesmo com as entidades patronais, a Organização das Cooperativas do Brasil, a Confederação Nacional da Agricultura, o Senai e tantas outras que estão aí.
"Se a CPI resolve analisar a situação financeira e fiscal das entidades ligadas aos trabalhadores, deve fazer o mesmo com as entidades patronais"
O senhor pretende fazer isso já no reinício das atividades da comissão?
Essa é uma questão que será colocada não só por mim, mas por vários parlamentares, que vão levantar esse questionamento no decorrer da própria CPI.
Nos últimos dois anos, as CPIs estão mergulhadas em uma série de suspeitas de irregularidades na conduta de seus membros. O que pode salvar os trabalhos desta comissão parlamentar de inquérito?
Há uma diferença grande entre a suspeita que recai sobre algumas CPIs, como a dos Combustíveis, na qual havia interesses comerciais em jogo, e a que pode pesar sobre uma comissão como a nossa, onde existe uma divisão clara lá dentro. Essa divisão deve criar dificuldades na própria aprovação do relatório. São posições tão opostas que podem levar a um impasse na votação do texto final. Espero que, mesmo que não concordem com a minha visão sobre as questões fundiárias, os ruralistas possam, pelo menos, aprovar a parte do relatório que trata das resoluções de natureza legislativa e constitucional para viabilizar a reforma agrária e diminuir a violência no campo brasileiro.
Os ruralistas se queixam de que houve aumento no número de ocupações de terra durante o governo Lula. Em relação à reforma agrária, houve alguma evolução nesses dois últimos anos?
Houve mudança na medida em que o enfoque dado pelo governo Fernando Henrique Cardoso à reforma agrária tinha dois aspectos. Primeiro, a vinculação da reforma agrária à visão de mercado. A terra era uma mercadoria. Por isso, houve incentivo grande à compra de terra, o que fez com que, ao invés de punir o grande proprietário que não utilizava de forma adequada sua terra, a reforma agrária se tornasse um grande negócio imobiliário. Segundo, ela foi vista apenas como política compensatória. Desapropriou-se muito, mas não se deu qualidade aos assentamentos, muita gente abandonou lotes por falta de assistência, crédito e preço, coisas que inviabilizam a reforma agrária. A visão do plano de reforma agrária do governo Lula parte de outra premissa, visa a atacar a injustiça social, que é a má distribuição social, prevê a desapropriação de terra como instrumento principal, no lugar da compra. Trabalha também na perspectiva de qualificar melhor os assentamentos. O problema da reforma agrária do governo Lula é outro: a falta de sua execução. A falta de infra-estrutura do Incra e de recursos para as desapropriações e o contingenciamento das verbas, além dos entraves de natureza legislativa a que já me referi.
"(No governo FHC) a terra era uma mercadoria. Por isso, houve incentivo grande à compra de terra, o que fez com que, ao invés de punir o grande proprietário que não utilizava de forma adequada sua terra, a reforma agrária se tornasse um grande negócio imobiliário"
Os ruralistas não escondem o entusiasmo com o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, mas acusam o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, de trabalhar no sentido de prejudicar o desenvolvimento do agronegócio no país. Como o senhor avalia essa contradição?
Isso é uma inversão de valores. O agronegócio tem um aspecto importante, que é ser um item importante na balança comercial, respondendo por boa parte das nossas exportações, mas, do ponto de vista social, ele desemprega. Muitas vezes, oferece emprego de natureza precária, quando não usa trabalho escravo, e ainda traz problema ambiental. O agronegócio é que, na verdade, traz problemas sociais e ambientais graves para o país.
No caso do projeto da Lei de Biossegurança, a bancada ruralista acabou conseguindo aprovar na comissão especial um texto que atendia aos seus interesses. A mudança desagradou à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O senhor considera possível retomar a proposta original da Câmara no plenário?
A própria falta de votação dessa matéria na Câmara mostra a dificuldade que existe no próprio governo e na bancada para tratar do assunto. Houve um debate muito grande no governo. Esse projeto foi desvirtuado no relatório do ministro Aldo Rebelo (PCdoB-SP), quando ele ainda era líder do governo na Casa. Recuperou-se a idéia original com o relatório do deputado Renildo Calheiros (PCdoB-PE). Com isso, aprovou-se na Câmara uma solução de quase consenso, que atendia aos pesquisadores, mas que trazia também garantias ao meio ambiente e à defesa do consumidor. Mas tudo isso foi revertido no Senado. Fica até difícil dizer qual a posição do governo. A proposta aprovada na Câmara foi chancelada pelo governo, assim como a proposta dos senadores, que foi até encaminhada pelo líder do governo no Senado. O problema é que elas são completamente incompatíveis entre si. Esse é o impasse.
"A própria falta de votação dessa matéria (Lei de Biossegurança) na Câmara mostra a dificuldade que existe no próprio governo e na bancada para tratar do assunto"
Independentemente da posição do governo, como ficará a votação, já que partidos da base aliada, como o PP, o PL e o PTB, concentram boa parte da bancada ruralista na Câmara?
Não diria que o governo ficou refém, mas que ele está irremediavelmente dividido nessa questão. Há uma posição de confronto entre os ministros da Agricultura e do Meio Ambiente. Há uma divisão na base de apoio e dentro do próprio PT. Por isso, é difícil encontrar uma solução que não seja a própria votação.
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