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Debate jurídico
19/9/2025 12:00
Blindagem ou equilíbrio? Escudo para a impunidade ou garantia institucional? A recente aprovação da PEC das Prerrogativas - que seus críticos apelidaram de "PEC da Blindagem" - reacendeu uma disputa antiga sobre até onde vai o poder de reformar a Constituição. No calor do debate, falaram em retrocesso, em golpe contra a jurisdição penal e até em ameaça à democracia. Mas é preciso separar o juízo político da análise constitucional. A questão central é: a emenda realmente viola o núcleo essencial da separação de poderes? A resposta, a nosso ver, é negativa.
O texto aprovado restabelece a exigência de autorização prévia das Casas Legislativas para que parlamentares sejam processados criminalmente ou submetidos a medidas cautelares como prisão preventiva ou busca domiciliar. A prisão em flagrante de crime inafiançável continua possível, mas sujeita à deliberação da Casa em até 24 horas. Além disso, amplia o foro por prerrogativa de função para presidentes nacionais de partidos com representação no Congresso e estende a aplicação das prerrogativas a ex-parlamentares, desde que os fatos imputados tenham ocorrido durante o mandato.
É claro que tais medidas provocam apreensão. Muitos as veem como um escudo contra a responsabilização individual, uma "blindagem" contra a Justiça. Mas é preciso cuidado: nem toda mudança institucional é uma ruptura constitucional. A Constituição de 1988 protege, como cláusula pétrea, a separação de poderes. Só que essa proteção não petrifica arranjos específicos, e sim um núcleo essencial de independência e equilíbrio.
Esse núcleo se traduz em dois corolários da divisão de funções: a especialização funcional, que assegura a cada poder o exercício de suas competências típicas, e a independência orgânica, que impede a subordinação de um poder a outro. Não basta, portanto, que uma emenda altere as formas de interação entre Legislativo e Judiciário para que seja considerada inconstitucional. A violação apenas se caracteriza quando o núcleo é atingido.
Em primeiro lugar, se houver concentração de funções em um único poder, criando o que o Supremo já chamou de "instância hegemônica". Em segundo lugar, se a inovação esvaziar a independência orgânica ou as competências típicas dos poderes. Nada disso ocorre aqui: o Judiciário continua a julgar, o Legislativo não se transforma em tribunal. O que se introduz é um filtro político, discutível no plano político, mas que não suprime nem especialização nem independência.
Convém lembrar, aliás, que esse modelo não é uma invenção casuística. Entre 1988 e 2001, vigorou exatamente a exigência de licença prévia para processar parlamentares. Só em 2001 a regra foi substituída pela possibilidade de sustação do processo. A PEC, portanto, não inaugura um inédito retrocesso autoritário; retoma uma fórmula que já existiu sob a égide da mesma Constituição democrática.
O ponto crucial é distinguir crítica política de inconstitucionalidade. Se toda alteração institucional que desagrada fosse tachada de inconstitucional, transformaríamos as cláusulas pétreas em uma espécie de "metafísica ideológica", usada para interditar qualquer mudança. Elas são salvaguardas da essência constitucional, não armas retóricas de conveniência.
Prerrogativas parlamentares não são privilégios pessoais. São garantias institucionais, assim como vitaliciedade e irredutibilidade protegem o Judiciário, e a imunidade funcional protege o Ministério Público. Não pertencem a indivíduos, mas à democracia representativa. A PEC pode ser criticada como inoportuna ou corporativista. Mas isso é questão política, não jurídica. No plano constitucional, não há concentração de funções em um poder hegemônico, nem esvaziamento da independência dos demais.
A experiência internacional reforça essa visão. Constituições como a da Alemanha, da Itália e de Portugal consagram limites materiais ao poder de reforma: a dignidade humana, a forma republicana, a separação dos poderes e a independência dos tribunais. Nenhuma delas congela arranjos institucionais secundários; o que vedam é a mutilação dos fundamentos democráticos.
É nesse patamar que a PEC deve ser analisada. Ela pode ser acusada de exagero político, mas não de destruição constitucional. A democracia vive de tensões permanentes. Precisa de freios, mas também de contrapesos. O que a PEC faz é recolocar o pêndulo em outro ponto, sem abolir a essência do sistema.
A Constituição não é uma peça de museu; é um organismo vivo, que se adapta sem perder sua identidade. A PEC das Prerrogativas pode desagradar, pode soar auto protetiva, mas não mutila a democracia. O verdadeiro risco está em confundir política com inconstitucionalidade, em transformar a Constituição em refém das paixões do momento. Blindagem? Talvez no plano político. Mas, juridicamente, trata-se apenas de mais um capítulo no longo jogo de equilíbrio que mantém de pé o Estado Democrático de Direito.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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