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Reforma administrativa
26/12/2025 12:00
A divulgação, em dezembro de 2025, da minuta do Anteprojeto da Lei Geral da Gestão Pública (LGestP) marca um novo e relevante capítulo no longo e inconcluso debate sobre a modernização do Estado brasileiro. Elaborada por uma Comissão de Especialistas instituída no âmbito da Advocacia-Geral da União (AGU), a proposta pretende substituir o Decreto-Lei nº 200, de 1967, estabelecendo um novo marco normativo para a organização e o funcionamento da Administração Pública, com foco declarado na efetividade das políticas públicas e na centralidade do cidadão.
A iniciativa, contudo, não se resume a uma simples atualização técnica de um diploma legal anacrônico. Ela revela tensões institucionais, escolhas conceituais e disputas políticas que ajudam a compreender os rumos da reforma administrativa no Brasil, especialmente quando analisada em conjunto com propostas paralelas em tramitação no Congresso Nacional, como a PEC nº 38/2025.
O Decreto-Lei nº 200/1967, editado em contexto autoritário, mas cuja elaboração se iniciou ainda no Governo João Goulart, com resultado dos esforços para uma "reforma administrativa", representou um avanço significativo à época, ao introduzir princípios como planejamento, descentralização, delegação de competências e controle racionalizado da máquina administrativa federal. Seu impacto foi tão profundo que influenciou diretamente o desenho constitucional de 1988, especialmente no que se refere à distinção entre Administração Direta e Indireta. Ainda assim, sua lógica permanece centrada na organização interna do Estado, na hierarquia e no controle formal da legalidade, mostrando-se insuficiente diante da complexidade do Estado democrático contemporâneo.
A LGestP propõe uma mudança de paradigma. Em vez de uma administração voltada para si mesma, a nova lei reposiciona as políticas públicas como a razão de ser da atuação administrativa. A Administração Pública passa a ser concebida como instrumento de geração de valor público, orientada à solução de problemas concretos da sociedade, à promoção de direitos fundamentais e à redução de desigualdades territoriais e sociais. Trata-se de um deslocamento conceitual relevante, que aproxima o direito administrativo das abordagens contemporâneas da governança pública.
Nesse aspecto, a proposta dialoga com tentativas anteriores de reforma. Desde os estudos do IPEA em 1978, passando pelo anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Federal de 1989 e pela proposta elaborada em 2009 por comissão de juristas instituída pelo então Ministério do Planejamento, há uma linha de continuidade que valoriza planejamento, coordenação, autonomia responsável e orientação a resultados. A LGestP não rompe com essa trajetória; ao contrário, representa seu amadurecimento, incorporando agendas como governança colaborativa, gestão por evidências, inovação e transformação digital.
Um dos eixos centrais da proposta é o tratamento sistemático das políticas públicas. A LGestP define-as como ações estatais legítimas destinadas a enfrentar problemas públicos e realizar objetivos de interesse coletivo, envolvendo atores estatais e não estatais. Introduz o ciclo de políticas públicas — formulação, implementação, monitoramento e avaliação — como elemento estruturante da ação administrativa, além de criar instrumentos como o catálogo unificado anual de políticas públicas, voltado à integração entre planejamento, orçamento, execução e transparência.
O fortalecimento do monitoramento e da avaliação representa outro avanço relevante. Diferentemente do modelo tradicional, centrado no controle formal e financeiro, a LGestP orienta o controle para resultados, impactos e riscos, associando autonomia administrativa à responsabilização proporcional. Essa mudança tem potencial para aprimorar a efetividade das políticas públicas, desde que acompanhada de capacidades institucionais adequadas e de uma cultura administrativa orientada à aprendizagem.
A governança pública colaborativa é outro pilar da proposta. A LGestP adota um conceito amplo de governança, que engloba estruturas, processos, mecanismos e estratégias, enfatizando a articulação entre órgãos, entes federativos, sociedade civil e setor privado. A cooperação federativa deixa de ser acessória e passa a constituir condição essencial para a efetividade das políticas públicas, com reconhecimento explícito das assimetrias de capacidades entre os entes e atribuição à União de papel indutor e coordenador, sem prejuízo da autonomia subnacional.
As relações com organizações da sociedade civil e com o setor privado são tratadas sob uma lógica de proporcionalidade, respeito à autonomia e foco em resultados. O anteprojeto busca afastar modelos excessivamente procedimentais, deslocando o eixo do controle para o cumprimento do objeto e o impacto social das parcerias. Ao mesmo tempo, preserva a impessoalidade, a transparência e a responsabilidade pública, delimitando claramente o alcance dessas disposições em relação aos regimes jurídicos específicos de licitações e contratos administrativos.
Apesar de seus méritos, a LGestP não está isenta de problemas. Do ponto de vista institucional, chama atenção o protagonismo conferido à AGU na condução do processo, em detrimento do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), a quem a legislação vigente atribui competências centrais em matéria de organização administrativa e gestão pública. Essa sobreposição institucional fragiliza a governança do processo de reforma e levanta questionamentos sobre a coerência do arranjo adotado.
Há, também, questões jurídico-normativas relevantes. O anteprojeto apresenta pretensão de "lei nacional", aplicável de forma facultativa a Estados e Municípios, sem que haja previsão constitucional clara para tanto, mas, dada a tradição de mimetismo institucional, os entes subnacionais tenderão a acatar as suas concepções. Ademais, em diversos pontos, disciplina matérias já reguladas por leis específicas — como empresas estatais, parcerias e contratos de desempenho — sem observar expressamente as exigências da Lei Complementar nº 95/1998, o que pode gerar conflitos normativos e insegurança jurídica.
Outro ponto sensível reside na classificação das entidades da Administração Indireta, especialmente no tratamento conferido às "fundações estatais", termo que vem para substituir as "fundações públicas", de forma a que todas as que venham a ser instituídas o sejam como entes de direito privado. A proposta adota terminologia e soluções que não eliminam controvérsias históricas sobre o regime jurídico dessas entidades e, em alguns casos, podem tensionar dispositivos constitucionais que exigem lei complementar para definição de suas áreas de atuação.
Por fim, a LGestP deve ser analisada em conjunto com a PEC nº 38/2025, que propõe alterações constitucionais profundas em temas como organização administrativa, governo digital e gestão de pessoas. A eventual aprovação dessa PEC exigirá revisão substancial do anteprojeto, sob pena de incompatibilidades normativas.
Em síntese, a Lei Geral da Gestão Pública representa uma proposta ambiciosa e necessária para a modernização do Estado brasileiro. Seu mérito principal está em recolocar as políticas públicas, a cooperação federativa e a governança colaborativa no centro do direito administrativo.
Contudo, sua viabilidade política e jurídica dependerá da capacidade do governo e do Congresso de harmonizar agendas, corrigir inconsistências e assegurar que a reforma administrativa fortaleça — e não fragilize — o Estado Democrático de Direito e a capacidade estatal de promover desenvolvimento, inclusão e direitos. O texto agora passa por análise interna no governo, com expectativa de envio ao Congresso no primeiro trimestre de 2026.
A proposta é oportuna para atualizar a administração ao século XXI, alinhando-a à CF/1988 e desafios como desigualdades e digitalização. Contudo, exige depuração cuidadosa para corrigir vícios constitucionais, reduzir detalhamento excessivo e equilibrar inovação com fortalecimento estatal. Sob liderança da Casa Civil, o governo deve desafiar o texto, promovendo aperfeiçoamentos que garantam um Estado efetivo, democrático e equitativo. A revogação simbólica do DL 200 marca uma transição, mas seu sucesso dependerá do refinamento legislativo.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].