A pouco mais de uma semana para passarem o cargo a seus sucessores ou iniciarem um novo mandato, os prefeitos correm contra o relógio para fechar as contas e escapar das punições previstas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Débitos em conta corrente, teto para endividamento e limite para gastos com pessoal fazem parte de uma equação complicada que pode resultar até na prisão dos administradores públicos.
Mais do que a remota possibilidade de detenção, o que preocupa os prefeitos é o risco concreto de terem seus direitos políticos suspensos, afirma a prefeita de Maceió, Kátia Born (PSB). Em entrevista ao Congresso em Foco, a presidente da Federação Nacional dos Prefeitos diz que não há possibilidade de os administradores municipais se ajustarem à Lei sem a ajuda do governo federal. "Nossa preocupação não é com a prisão. O problema é o prefeito ficar inelegível, porque não há dolo público, não é questão de desvio de recursos ou roubo, mas de fechamento de contas dentro da LRF. Você pega um débito de dez milhões e o governo diz que você tem de deixar zero. Como deixar zero se você não teve finanças suficientes para isso. É preciso repensar essa questão", diz a prefeita. Kátia Born culpa os governadores da região Centro-Oeste pelo adiamento da votação do aumento do repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), medida que iria gerar um acréscimo de R$ 1,4 bilhão para os cofres das prefeituras. "Não é admissível, por causa de uma região, penalizar hoje 5540 municípios. Se tivesse a emenda sido aprovada, a situação dos prefeitos seria hoje bem melhor", afirma. O problema é que o aumento do repasse dos recursos federais para os municípios está na mesma proposta de emenda constitucional que estabelece a unificação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Os governadores que se valem de incentivos fiscais para atrair investimentos resistiram à mudança e acionaram suas bancadas na Câmara para conter a regra prevista na reforma tributária. Apesar da pressão de partidos da base aliada e da oposição, o governo não aceitou a votação em separado das duas propostas. Resultado: a votação só deve ocorrer em fevereiro. O Planalto alega que o aumento do repasse do FPM só se justifica com a unificação da legislação do ICMS. Por trás do impasse está o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Pela proposta do governo, com o fim da guerra fiscal, os estados seriam compensados por um fundo de desenvolvimento regional, composto por recursos do IPI, que também é a principal fonte do FPM. Como compensação, o repasse para os municípios subiria dos atuais 22,5% para 23,5%. Congresso em Foco - Quais as conseqüências do adiamento da votação do dispositivo da reforma tributária que aumenta em ponto porcentual o repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM)?
Kátia Born - A reforma tributária foi adiada para 14 de fevereiro. Nós insistimos em aprovar toda a reforma, com a unificação do ICMS de todos os estados. A pendência ocorreu porque os deputados da região Centro-Oeste não quiseram aprovar a unificação do ICMS, que está no mesmo texto que trata do aumento do repasse para as prefeituras. O que vai acontecer a partir de agora? A gente esperava que esse aumento em um ponto porcentual no repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) fosse pago já no dia 10 de dezembro, para que todos os atuais prefeitos pudessem fechar suas contas. O FPM é composto hoje do repasse de 22,5% do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A expectativa era de que, com esse aumento, pudéssemos ter caixa para discutir o 13o e fazer um planejamento global, porque a situação a cada ano se torna mais difícil para os municípios.
O governo alega que sem a unificação do ICMS não há motivo para aumentar o repasse, que seria uma compensação para os municípios decorrente da perda de recursos do IPI para os estados, numa forma de compensá-los pelo fim da guerra fiscal. Esse argumento é convincente?
Na realidade, a Frente Nacional de Prefeitos defende a aprovação da reforma tributária como um todo. No início da semana passada, o governo acenou que poderia pinçar esse aumento do repasse da unificação do ICMS. Infelizmente não deu pra aprovar. Os prefeitos dos municípios maiores têm uma arrecadação maior, porque recebem um volume expressivo referente ao IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o ISS (Imposto sobre Serviços). A situação é crítica nos municípios com população abaixo de 30 mil habitantes, que esperavam esse aumento para oxigenar a máquina administrativa. Houve um acordo de líderes na Câmara, desfeito a pedido do governo. Por isso, os prefeitos vão terminar o ano sem saber como fechar as contas dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal.
"Os prefeitos vão terminar o ano sem saber como fechar as contas dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal"
Neste ano, os prefeitos reclamaram que o FPM teve queda de 3,5%. Por quê?
Houve queda significativa, porque qualquer tipo de redução do IPI recai em cima dos municípios. Esperávamos no mês de novembro um incremento de 15% referente ao ano passado. Infelizmente, esse aumento foi de apenas 10%. Neste mês, até agora, a variação foi de menos 15%. Enquanto isso, a arrecadação do governo federal com a Cofins foi maravilhosa. Na parte do Imposto de Renda também houve uma certa redução. Como a transferência para estados e municípios se dá por esses dois tipos de impostos (IR e IPI), qualquer redução afeta o repasse para as prefeituras. Na última quarta-feira, o presidente Lula anunciou que vai corrigir a tabela do Imposto de Renda em 10%. Com isso, a partir de janeiro, os municípios e os estados terão menos 4,7% de repasse de FPM e FPE (Fundo de Participação dos Estados).
É preciso ter muito cuidado, porque este país é uma federação. Temos discutido alternativas com o secretário de Assuntos Federativos, Vicente Trevas, com o ministro Aldo Rebelo (da Articulação Política) e com o Tesouro Nacional. O problema é que, muitas vezes, não conseguimos alinhar a mesma linguagem porque o governo federal quer superávit e os municípios precisam de arrecadação. Na realidade, avançamos este ano com a regulamentação do ISS para um maior número de instituições, como banco que não pagavam antes. Mas essa mudança beneficia praticamente só os municípios com mais de 30 mil habitantes. O restante, 80% dos municípios deste país, que têm menos de 80 mil habitantes, dependem do FPM.
"O problema é que, muitas vezes, não conseguimos alinhar a mesma linguagem porque o governo federal quer superávit e os municípios precisam de arrecadação"
A FNP já tem estimativa do impacto do reajuste do salário mínimo e da tabela do IR sobre os municípios?
Em fevereiro, entregamos ao Congresso Nacional um estudo mostrando que se o aumento fosse maior do que R$ 260 este ano, mais da metade dos municípios do Norte e Nordeste não conseguiriam pagar, porque 80% dos servidores das prefeituras dessas regiões recebem salário mínimo. Com esse novo aumento, as prefeituras terão de demitir para poder colocar o salário mínimo no nível que o governo federal está propondo (R$ 300). Daí a nossa urgência ser ainda maior para que a reforma tributária seja aprovada em fevereiro, o que injetaria R$ 1,4 bilhão de municípios. Como o novo valor do salário mínimo vai entrar em vigor em maio, os prefeitos teriam maior tranqüilidade para se ajustarem.
"Com esse novo aumento, as prefeituras terão de demitir para poder colocar o salário mínimo no nível que o governo federal está propondo (R$ 300)"
O aumento do repasse do FPM equaciona as perdas decorrentes da correção da tabela do imposto de renda?
Para os municípios, a correção da tabela é muito ruim, porque retira recursos das prefeituras e dificulta os ajustes à Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige dos prefeitos, a cada quatro meses, a prestação de contas à Câmara, ao TCU e à Fazenda Federal.
A senhora disse que os prefeitos não estão conseguindo fechar as contas este ano. Quais as conseqüências disso?
Temendo que o aumento do repasse não fosse aprovado a tempo pelo Congresso, muitos prefeitos demitiram cargos comissionados, reduziram medicamentos nas unidades de saúde e cortaram custeios, já em novembro, porque a LRF é muito clara. Não pode deixar nem novembro nem o 13º em aberto. Caso contrário, o prefeito vai ser penalizado dentro da lei. Por isso, estamos discutindo com o Tesouro Nacional para que haja uma regulamentação.
"Temendo que o aumento do repasse não fosse aprovado a tempo pelo Congresso, muitos prefeitos demitiram cargos comissionados, reduziram medicamentos nas unidades de saúde e cortaram custeios, já em novembro, porque a LRF é muito clara"
Como seria, na prática, essa regulamentação que vocês estão negociando com o Tesouro Nacional?
Vou dar um exemplo. Um prefeito assumiu há quatro anos e recebeu INSS atrasado, precatórios atrasados e folha de pagamento atrasada. Nós estamos propondo ao Tesouro Nacional e aos tribunais de contas que o resto a pagar seja reduzido daquele resto a pagar que o prefeito recebeu. Como a LRF não foi regulamentada ainda, o entendimento vai ser aquilo que o tribunal de contas de cada estado decidir. Com isso, deveremos ter prefeitos sérios, que fizeram lição de casa, pagaram débitos anteriores que nada tinham a ver com a gestão deles, serem penalizados por causa de restos a pagar - que tinham mesmo de ser cumpridos - porque os recursos não chegaram ao caixa devido à redução do repasse federal.
"Deveremos ter prefeitos sérios, que fizeram lição de casa, pagaram débitos anteriores que nada tinham a ver com a gestão deles, serem penalizados por causa de restos a pagar - que tinham mesmo de ser cumpridos - porque os recursos não chegaram ao caixa devido à redução do repasse federal"
Além dessa proposta, existe alguma outra alternativa?
Não há outra alternativa. Deixei a proposta com o ministro Aldo Rebelo, a quem apresentei as dificuldades que os municípios enfrentam para saber se havia algum resíduo do FPM para pagar junto com repasse do dia 20. Tentamos, além disso, antecipar o FPM do dia 30 para o dia 27. Como presidente da Frente Nacional dos Prefeitos, tenho que buscar qualquer alternativa extra para que os prefeitos tenham tranqüilidade para fechar suas contas.
Como principais cabos eleitorais dos deputados, os prefeitos exercem uma influência grande na Câmara. A dificuldade na votação do aumento do repasse do FPM pode se refletir em dificuldade para outras votações na Casa no início do ano que vem?
A nossa esperança é de que os governadores do Centro-Oeste entrem num acordo. Esperamos a compreensão principalmente do governador Marconi Perillo (PSDB-GO), que foi o maior opositor da unificação do ICMS. É preciso entender que este país é uma Federação e tem de ser tratado como tal. Não é admissível, por causa de uma região, penalizar hoje 5540 municípios. Se tivesse a emenda sido aprovada, a situação dos prefeitos seria hoje bem melhor.
"É preciso entender que este país é uma Federação e tem de ser tratado como tal. Não é admissível, por causa de uma região, penalizar hoje 5540 municípios"
Há vários projetos na Câmara modificando a LRF. Alguma dessas propostas é viável e tem o apoio da Frente Nacional dos Prefeitos?
Não é modificando, é regulamentando. O resto a pagar é uma coisa que não foi regulamentada até agora. Quando a LRF foi aprovada, o senador Saturnino Braga (PT-RJ) disse que, em quatro anos, o governo veria a necessidade de regulamentar essa lei. Não deu outra. Na realidade, agora, que somos a primeira leva de municípios dentro da LRF, os próprios tribunais de contas estão sentindo essa necessidade.
A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê até prisão de prefeitos em casos específicos. Há risco de isso acontecer a partir de janeiro?
Nossa preocupação não é com a prisão. O problema é o prefeito ficar inelegível, porque não há dolo público, não é questão de desvio de recursos ou roubo, mas de fechamento de contas dentro da LRF. Você pega um débito de dez milhões e o governo diz que você tem de deixar zero. Como deixar zero se você não teve finanças suficientes para isso. É preciso repensar essa questão.
"Nossa preocupação não é com a prisão. O problema é o prefeito ficar inelegível, porque não há dolo público, não é questão de desvio de recursos ou roubo, mas de fechamento de contas dentro da LRF"
A relação da União com os municípios melhorou durante o governo Lula, em comparação aos anteriores?
Três meses depois de assumir o cargo, o presidente Lula criou a Secretaria de Assuntos Federativos. Desde então, há um pacto federativo no qual as questões dos municípios e dos estados são discutidas de forma colegiada, com a FNP, a CNM (Confederação Nacional dos Municípios) e a ABM (Associação Brasileira de Municípios). Estamos discutindo a reforma tributária, a regulamentação dos consórcios públicos e o rebaixamento do diesel para baixar o preço da passagem de ônibus. Hoje temos mais de 40 milhões de trabalhadores desempregados que não têm acesso ao transporte público de qualidade. Nos governos anteriores, os prefeitos eram recebidos com cachorros no Palácio do Planalto, porque, para eles, prefeito não tinha valor nenhum.
O que mudou, por exemplo?
Foi aprovada, na quarta-feira, em Belo Horizonte, a inserção dos municípios na discussão do Mercosul, que hoje é a quarta maior economia do mundo. Os países que participam do Mercosul têm 230 milhões de habitantes e movimentam algo em torno de US$ 85 bilhões, em exportação, e US$ 75 bilhões, em importação. Como toda essa discussão podia acontecer sem a participação dos municípios? O colegiado dos ministros da Fazenda do Mercosul aprovou que, a partir de agora, os municípios estarão incluídos na discussão nacional.
"Nos governos anteriores, os prefeitos eram recebidos com cachorros no Palácio do Planalto, porque, para eles, prefeito não tinha valor nenhum"
Qual vai ser a prioridade dos municípios na agenda legislativa?
Vamos estar no Congresso Nacional a partir do dia 14 de fevereiro discutindo reforma tributária. Esperamos que até lá o Centro-Oeste consiga aceitar a unificação do ICMS. Priorizamos também a aprovação dos projetos do marco regulatório do saneamento e dos consórcios públicos.
Os estados deveriam aprofundar mais essa discussão, porque os consórcios precisam ser regulamentados. Como discutir saneamento, aterro sanitário em regiões metropolitanas, se você não pode fechar o negócio porque não há legalidade no consórcio. Quando você vai discutir saúde, integração de um município com outro não tem consórcio. Quando você vai discutir transporte, não tem consórcio. O consórcio é necessário não só para os municípios, mas para os estados também.
Mas os estados resistem a esses dois projetos.
Os estados acham que a titularidade sendo dos municípios prejudica os investimentos. Não é verdade. Sendo a titularidade dos municípios, os estados e o governo federal terão de fazer parceria com as prefeituras. Se o cidadão mora num município, que está incluído na Federação, por que a titularidade não pode ser exatamente daquela cidade onde existem as bacias e a distribuição?
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