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Congresso em Foco
9/3/2009 7:30
Marcelo Mirisola*
Na virada dos oitenta para os noventa, e até meados dos noventa, era comum – em determinados grupos – ter amigos mortos pela Aids. Era uma época de desinformação e pânico generalizados. Conheci gente que não passava defronte o Hospital Emilio Ribas. Não havia nenhuma perspectiva de tratamento, muito menos de cura. Cazuza agonizou em praça pública. Na capa da Veja. Eu nunca tive um amigo que morreu de Aids. Nenhum, nem pra remédio (que trocadilho mais infame, não resisti).
Talvez porque não tivesse muitos amigos, e os poucos panacas que desfrutavam da “espuma dos meus dias” não se incluíam – de jeito nenhum – no chamado grupo de risco. Eu acho que não tive amigos. Se, para tê-los, a premissa era o interesse comum, bem, posso tranquilamente dizer que sempre fui um cara isolado. Não lembro de ninguém que cavalgasse faxineiras ou se interessasse por calcanhares de senhoras impolutas. O prazer que as guimbas manchadas de batom me proporcionaram foi essencialmente solitário.
Não podia ser de outro jeito. Eles, os panacas, viajavam para Ubatuba, e iam ver Palmeiras x São Paulo no Estádio do Pacaembu. Tirando a seleção do Telê, sempre desprezei futebol. Sou do tempo em que a Augusta era a rua das putas (década de oitenta) e o máximo que podia acontecer era o sujeito pegar uma gonorréia. A Aids avançava em São Francisco (EUA). Nos primórdios foi batizada de Peste Gay. Acompanhávamos os primeiros casos através do Jornal Nacional e de revistas sensacionalistas do tipo Veja. A classe média – como sempre e desde aquela época – blindava-se num mundinho de clubes, quiosques e morbidez: quem seria a próxima bicha (acima de qualquer suspeita) a tombar?
Não sei se tem alguma relação, mas foi no auge da crise da Aids, que Mario Amato disse – sob um daqueles quiosques infames – que os empresários brasileiros abandonariam o país caso Lula fosse eleito. Setubão bebericava seu Scotch e ria dos cadáveres, dos que haviam de morrer e dos póstumos também.
Anos travados, 1986, 87, 88... eu infernizava a vida do urologista que coincidentemente cuidava dos meus poucos e insossos amigos, meia dúzia de punheteiros prosaicos e pacíficos. Sim, acho que eles eram um pouco meus amigos, frequentávamos a mesma escola e o mesmo urologista.
Lembro da feição debochada do dr. Frotta toda vez que eu irrompia em seu consultório: “Mais fácil” – ele dizia: – “cair um avião na sua cabeça. Passa uma pomada, e esquece”. O tempo voou e eu não esqueci.. Meus amigos (?) sumiram. Nenhum deles virou “artista”, nem morreu de Aids. Provavelmente não. Imagino que devam ter casado, e que procriaram. Talvez tenham desfrutado (ou ainda desfrutam, sabe se lá) de vidinhas felizes ao lado de esposas barangas e filhos adolescentes. Sorte deles. Um chifre eventualmente e uma ligeira indisposição com o síndico do prédio. O que mais poderia ter acontecido na vida daqueles caras, além das singelas gonorréias? O filhão de 17 viciado em internet e a mais nova, de 15 anos, lésbica? Churrasco de contra-filé e cerveja Sol. O que mais?
O que aconteceu comigo?
Não quero me estender. Aliás, já contei essa história num livro que publiquei ano passado, o Animais em Extinção. O fato é que o tempo voou e virei escritor. Não escolhi, aconteceu. Se pudesse escolher... sei lá, acho que seria dentista e me apaixonaria pela namorada da minha filha lésbica de quinze anos. .
Hoje a Aids está sob controle. As menininhas que tomaram o lugar das putas na Augusta não estão nem aí com a doença. Elas não têm o pânico dos oitenta (aliás, estavam nascendo naquela época): as neo-putinhas de hoje contam apenas com a informação diluída dos 00. E quando dão – para os meninos – dispensam alegremente a camisinha. Mas elas preferem as meninas.
Outro dia me acusaram de ser um tiozinho romântico. Fazer o quê? Acho que sou isso mesmo, e tenho um fantasia nostálgica que é descer a rua Augusta no meu Chevette, parar na esquina da Caio Prado, e ouvir essas palavras de um puta: “Oi, gato. Tudo bem? Com gonorréia é duzentão”. Eu é que não ia pechinchar. O Herói Devolvido é quem diz “quem ama não pechincha”. Mario Amato e Setubão morreram. Acabou. Repito: não existem mais putas na Augusta, Lula foi eleito e reeleito e a gonorréia virou DST.
O negócio é esquecer os íncubos dos 80, 90 e viver os estertores dos 00. E desfrutá-los – se possível – sem camisinha e conforme orientação de Bento XVI, o Santo Papa. Voltando à Aids. Reconheço que é uma falha na minha biografia não ter tido nenhum amigo que morreu de Aids nos primórdios, quase uma falta de caráter. Mas como é que eu podia saber que ia virar artista? Logo eu! Imagino que deve ser a mesma coisa que vir da geração anterior (a geração das indenizações milionárias) e não ter nenhum amigo que foi torturado ou morto pela ditadura.
Março de 2009
Mas agora, em compensação, tenho um amigo que virou mendigo. Não é um verdadeiro corte epistemológico, uma coincidência fabulosa de tempo e lugar? O encontrei na Pça. Roosevelt, fuçando no Sebo do Bactéria. Mendigo mesmo, morador de rua. Unhas pretas, mijado, encarniçado, andrajoso. Cor da rua, aquela cor que as pessoas atravessam e cospem em cima, marrom-acinzentado, mendigão.
Ele me disse que, às vezes, gasta o dinheiro das esmolas na Lan House, e – vejam só – ainda acompanha minhas crônicas aqui no Congresso em Foco. Leitor. Um rapaz educado, porém a rua e o crack o deixaram meio xarope. Fluente em francês e italiano. E, curiosamente, conserva o mesmo papo furado de cinco anos atrás, quando trabalhava numa produtora de vídeos e frequentava o Centro Cultural São Paulo. Os mesmos Kerouac, Bukowski, e um surpreendente Ionesco para embolar o meio de campo: desde aquela época, confesso, eu tive uma certa afinidade com esse cara, portanto ele era (ou foi ou é) mais amigo do que aqueles meus amigos que viajavam pra Ubatuba e nada tinham a ver comigo, tirando – claro – o urologista que frequentávamos à época.
Isso quer dizer que, embora atrasado, começo a ficar quite com a minha biografia. E agora posso estufar o peito e dizer: tenho um amigo que virou mendigo, sou testemunha do meu próprio tempo. Eis me aqui, nos 00. Contemporâneo de mim mesmo.
E a Aids? – perguntariam os fariseus. Ora, a Aids está sob controle. O passado está sob controle. E – como tudo o que está sob controle – a Aids e o passado continuam mat
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