O deputado Rubens Otoni (PT-GO), relator da reforma política na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), é um crítico do atual modelo eleitoral. Na avaliação dele, o financiamento privado de campanha torna os candidatos reféns de seus financiadores e a escolha pelas listas abertas inibe a participação do cidadão na vida partidária.
Segundo ele, essas distorções serão atacadas a partir das eleições de 2006, quando o país deve inaugurar o sistema de financiamento público e de listas partidárias fechadas. A previsão otimista só se confirmará se os defensores da reforma política vencerem a resistência interna, principalmente dos partidos da base governista. A reforma política é, senão a única, uma das poucas propostas em tramitação no Congresso Nacional que agregam as cúpulas do PFL, do PSDB e do PT. No chamado baixo-claro desses partidos, contudo, a oposição à mudança ainda é latente. Um dos motivos alegados é que a proposta privilegia os quadros de comando das legendas. Otoni discorda. Para ele, o novo modelo vai atrair o cidadão para a vida partidária. "A sociedade terá de se engajar nos partidos políticos, que, a partir daí, terão novo perfil, que não será mais o do coronelismo. Isso só existe hoje porque a sociedade não está dentro dos partidos para participar da vida política", considera. Outro ponto nevrálgico da reforma é o que proíbe o financiamento privado de campanha. Organizações não-governamentais consideram que o novo modelo ainda está longe de garantir o fim do chamado "caixa-dois" durante a disputa eleitoral. O relator concorda, em parte. "O financiamento público de campanha é uma contribuição, mas dizer que ele resolverá, por si só, todos os problemas é um exagero. Não é essa a nossa pretensão", observa. Congresso em Foco - As discussões sobre a reforma política serão retomadas ainda este ano?
Rubens Otoni - A reforma política é uma discussão importante para o país. Já avançamos muito na medida em que criamos entre os parlamentares a necessidade de modernizar o sistema eleitoral e organizar uma legislação que seja transparente e viabilize a cidadania nos próximos 30 anos. Conseguimos avançar o trabalho na comissão especial da reforma política e o desafio agora é aprovar o relatório na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania até o final deste semestre, logo após o processo eleitoral. Com isso, poderemos votar a proposta em plenário já no próximo semestre.
Mas a proposta ainda enfrenta resistência, principalmente no que se refere ao financiamento público de campanha e na adoção das listas preordenadas. Como superar isso?
A reforma política aponta para a modernização do processo eleitoral, ao superar uma legislação que vem desde 1946. Toda mudança cria polêmicas, mas estou convencido de que a discussão sobre o financiamento público de campanha está madura na sociedade. Da mesma forma, a possibilidade do fim das coligações proporcionais e a instituição do voto em listas preordenadas também estão sendo debatidas. O que nos resta é tentar superar as dúvidas.
A lista preordenada dispensa a adoção de outros mecanismos para fazer valer a fidelidade partidária?
A lista preordenada é um instrumento para garantir a fidelidade partidária, que virou clamor da sociedade. Podemos discutir outros mecanismos, mas a lista é uma forma de vincular a fidelidade partidária ao financiamento público de campanha. Não há como fazer o financiamento público com o voto individual. Seria impossível haver um processo de fiscalização. A lista preordenada chega como possibilidade concreta de garantir os dois pontos altos dessa reforma, o financiamento público de campanha e a fidelidade partidária. "Não há como fazer o financiamento público com o voto individual. Seria impossível haver um processo de fiscalização" O senhor pretende trabalhar com outros dispositivos para garantir a fidelidade partidária?
Um dos mecanismos que pretendemos adotar é o de aumentar a exigência de filiação antes do lançamento das candidaturas. Uma fidelidade partidária garantida seria aquela em que se delegasse o mandato ao partido. Ou seja, quando o indivíduo deixasse o partido, ele teria de entregar o mandato para a legenda. Essa proposta não tem a mínima chance de aprovação e, por isso, não iremos apresentá-la. Por isso, insisto, trabalharemos com o tempo de filiação. Hoje basta ao candidato estar um ano filiado para disputar a eleição. Se aumentarmos esse período para dois ou três anos, teremos um instrumento de fidelidade partidária. "Uma fidelidade partidária garantida seria aquela em que se delegasse o mandato ao partido. Essa proposta não tem a mínima chance de aprovação e, por isso, não iremos apresentá-la" O senhor, então, não pretende fazer nenhuma alteração na proposta da comissão especial?
Como participei ativamente das discussões da comissão especial da reforma política e votei favoravelmente ao relatório, é natural que eu parta desse acúmulo de informações. Isso, claro, não me impede de ouvir os deputados que resistem às mudanças. Queremos uma reforma política que atenda à ampla maioria das representações políticas na Câmara e no Senado. Estamos abertos à discussão, mas a minha referência será aquilo que foi definido na comissão especial.
Além de parlamentares, organizações não-governamentais têm criticado o financiamento público de campanha, alegando que ele não elimina a possibilidade de haver caixa-dois com dinheiro público. O senhor também enxerga esse risco?
Nenhuma ação na vida resolve um problema totalmente. O financiamento público de campanha é uma contribuição, mas dizer que ele resolverá, por si só, todos os problemas é um exagero. Não é essa a nossa pretensão. Com o financiamento público de campanha poderemos ter uma disputa mais transparente, com possibilidade de aumentar a fiscalização no processo eleitoral e fazer com que os candidatos tenham uma preocupação maior nas suas campanhas. "O financiamento público de campanha é uma contribuição, mas dizer que ele resolverá, por si só, todos os problemas é um exagero. Não é essa a nossa pretensão" O financiamento público de campanha não acaba com o caixa-dois?
Com certeza não, porque quando se quer burlar a legislação sempre se inventa algo. Com o financiamento público, a dificuldade será muito maior para aqueles que querem se aproveitar do poder econômico para se perpetuarem no poder.
Deputados do próprio PT temem que as listas impeçam a renovação de quadros e sirvam apenas àqueles que estão na cúpula dos partidos. Essa preocupação procede?
O problema é que se tenta analisar o que irá acontecer amanhã com as regras de hoje. Não podemos agir assim. É preciso visualizar o cenário a partir da nova legislação. Quando se aponta para a possibilidade do voto em lista, significa que as pessoas vão ter de ser preparar para não serem candidatas individuais. A sociedade terá de se engajar nos partidos políticos, que, a partir daí, terão novo perfil, que não será mais o do coronelismo. Isso só existe hoje porque a sociedade não está dentro dos partidos para participar da vida política. Ou seja, há um chefe que organiza o partido de maneira burocrática e manda nele. "A sociedade terá de se engajar nos partidos políticos, que, a partir daí, terão novo perfil, que não será mais o do coronelismo" Os partidos se fortalecerão?
Ao instituirmos o voto em lista, estamos automaticamente apontando para o fortalecimento dos partidos e a necessidade de qualquer pessoa que queira participar do processo eleitoral de se engajar na legenda. Os partidos deixarão de ser propriedade de A ou de B. Com isso, abre-se espaço para o surgimento de novas lideranças, até porque o candidato terá de participar do processo de discussão e de entrosamento dentro do partido. Ninguém terá vida política fora dos partidos. "Os partidos deixarão de ser propriedade de A ou de B. (...) Ninguém terá vida política fora dos partidos" Como explicar para a sociedade que dinheiro público será destinado para financiar campanha política? Como convencer a sociedade de que ela sairá ganhando?
Evidentemente que, com antecedência, ainda há algumas dúvidas. Num debate amplo e transparente, poderemos mostrar que não haverá mais gastos e poderá haver até economia. Hoje existe um processo em que o dinheiro é privado, mas aqueles que contribuem para as eleições estão pensando já em receber, depois das eleições, as verbas federais. Esse é um processo viciado e quase muito mais caro. É preferível que o governo invista, porque dará transparência e moralidade, evitando desvios das finalidades dos recursos federais. Atualmente eles não são enviados ao vento das necessidades, mas seguindo as orientações daqueles que contribuíram para a campanha eleitoral. "Hoje existe um processo em que o dinheiro é privado, mas aqueles que contribuem para as eleições estão pensando já em receber, depois das eleições, as verbas federais" O governo Lula está se envolvendo nessa discussão?
Ele não está se envolvendo. Acho que nem é o papel do Executivo se aprofundar nessa discussão, que é uma agenda do Legislativo. É claro que o governo acompanha politicamente todas as matérias, mas ele não tem buscado influenciar, nem acredito que fará isso. É um debate que diz respeito à representação política da Câmara.
O financiamento privado de campanha também interessa hoje aos empresários, que encontram nele um instrumento para cobrar depois favores dos eleitos. Não há uma resistência da parte deles à mudança?
Os empresários compreendem esse processo. Às vezes, as atitudes existentes no processo não são nem por vontade deles ou dos candidatos, mas por causa do encaminhamento dado pela legislação vigente. Cabe a nós legisladores a elaboração de uma lei que adequada ao momento que o país vive e prepará-lo para um processo político e democrático para os próximos 40 anos. A partir dessa legislação, todos se adaptarão e acompanharão o que manda a lei.
Se as mudanças são tão urgentes, o Congresso tem sua parcela de culpa ao protelar a discussão?
O processo de modernização da legislação deve ser permanente. Esse modelo eleitoral e político que temos no Brasil serviu bem numa determinada época. Venceu esse tempo e estamos no limite para passarmos para um novo ciclo, que exige modernização.
Por quê?
O país se modernizou, os instrumentos se desgastam com o tempo, a sociedade se acostuma com aquele processo e se aproveita dele. É preciso reformular o modelo, garantir os princípios norteadores da ética, da moralidade e da transparência, o que é importante num processo político-eleitoral. O atual sistema se esgotou e nossa responsabilidade é apresentar para a sociedade um novo modelo até o próximo ano.
As novas regras mudarão a correlação de forças no Congresso a partir da próxima legislatura?
Essa não é a preocupação, embora eu acredite que haja mudanças nesse aspecto. A idéia é criar um modelo que sobreviva às bancadas atuais, que têm apenas mais dois anos. Queremos um modelo eleitoral de organização partidária que sobreviva a pelo menos 40 anos. É preciso pensar no que seja melhor para o país, independentemente das vantagens que a bancada A ou B possa tirar dessa reforma.
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