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Congresso em Foco
27/8/2010 6:00
Zapeando na tevê a cabo domingo à noite, revi Dogville, produção de 2003 dirigida por Lars von Trier, em reprise no Telecine Cult. Antes do filme, o crítico Marcelo Janot lembrou que o diretor fez parte do Dogma 95, movimento do cinema europeu que postulava o retorno ao "filme puro", com pouca ou quase nenhuma produção, cinema que se sustentaria pela força do texto e da dramaturgia, Embora aqui se possa argumentar que sustentado por texto e dramaturgia, ele não se sustentaria como cinema, a proposta vale, porque surgiu precisamente como reação ao excesso de produção - efeitos especiais, explosões e zero de substância - que saturou a filmografia recente, sobretudo norte-americana.
Um filme sem cenários, apenas marcações a giz no chão e três horas de duração, mesmo com atores excepcionais, precisa ter uma história realmente muito boa para segurar o espectador, no caso, uma espectadora como eu, devoradora massiva e entediada de ficção; só uma tremenda história - mais que uma história, uma história com uma essência emblemática - aliada a uma narrativa magistral (ambas não são a mesma coisa: história é o plot, o enredo, narrativa é a forma como é contada, como se desenrola no tempo e espaço). No entanto, a não ser por um final que absolutamente não cola, uma descarada concessão ao esquema comercial da indústria, Dogville tem os dois.
Mas é bom avisar: isto não é crítica de cinema, antes uma exposição de motivos pelos quais alguma coisa neste filme me tocou fundamente. Porque a coisa começa sempre com uma emoção - funda, intermitente - mas ainda indizível (escritor nunca sabe o que quer dizer, escreve justamente para ficar sabendo), por isso é preciso escrever caçadoramente, perseguir o indizível, obrigá-lo a dar o serviço.
Então, é preciso começar a contar pelo mais difícil, mais chato, pelo servicinho do capeta que é recontar por escrito algo que se contou em imagens. A história acontece durante a Depressão, anos 30. Dogville é dessas cidadezinhas natimortas na periferia do mapa dos Estados Unidos com apenas quinze habitantes. Paul Bettany, filho do médico, é um jovem aspirante a escritor e filósofo, que tem por hábito reunir os vizinhos na igreja local propondo questões para a coletividade, tipo, por que Dogville tem problemas em receber presentes?
Então, certa noite, surge Nicole Kidman, fugindo dum tiroteio entre gângsteres. Paul a oculta numa mina e, em seguida, a apresenta aos moradores da cidade. Por sugestão de Paul, estes resolvem testá-la durante quinze dias, a fim de decidir se ela fica ou não na cidade. Estrangeira e fugitiva, Nicole concorda e começa a oferecer seus serviços para o povo de Dogville, um arranjo mutuamente agradável a princípio, até ser procurada pelos gângsteres e pela polícia.
Negociando com Paul, no papel de mediador entre a estranha e os moradores supostamente assustados, estes passam a fazer exigências mais e mais pesadas a Nicole, que agora, além de trabalhar duro, é obrigada a manter uma atitude extremamente dócil e passiva, colocando-se à mercê da cidade, seja cachorro, criança, velho cego: assim, para Nicole, cada mulher de Dogville se transforma em megera, cada homem, um estuprador.
Apoiando-se coletivamente, os bons, honestos e inofensivos cidadãos de Dogville se tornam um bando de criminosos sem honra e sem remorso. Suspeita de roubo, a moça é acorrentada a uma roda de ferro pesadíssima, que arrasta dia e noite pela cidade, escrava de ninguém e todo mundo.
Como acaba? O pai de Kidman, um gângster poderoso (James Cahn) chega finalmente em Dogville com seu grupo, graças a um telefonema de Paul - cuja má consciência alienada pretende "estar entregando uma criminosa à polícia" - e temos um final hollywoodiano pra lá de postiço, na linha dos Intocáveis. Agora no comando da gang, Nicole manda queimar a cidade e matar todos os moradores, "começando pelas crianças, para que a mãe assista sem chorar", matando Paul pessoalmente: "porque existem coisas que não se manda fazer".
O fato é que, desligado da família, do clã, da cidade, da nação, o indivíduo perde seu status jurídico-político, está reduzido à "vida nua" (Agamben), à "vida matada", perdendo sua condição de indivíduo, sua humanidade, caracterizando-se como "vítima sacrifical", um símbolo poderoso, terrível, arcaico - como os refugiados de guerra, os recolhidos aos campos de concentração, todos os prisioneiros políticos, dos gulags russos a Guantánamo e Abu Ghraib, colhidos no vácuo da exceção jurídico-política. Estes são nada, ninguém. Sujeitos à lei, até os criminosos existem. Na tradição hebraica, nem mesmo o Caim bíblico fica solto, desgarrado, vagabundo e fugitivo sobre a terra: recebe um sinal, um salvo conduto divino.
Guardadas as proporções, quem se perguntar em que condições ocorreu o Holocausto, Dogville responde: em grupo, para o qual transfere e divide o ônus moral, o ser humano é capaz de atrocidades. E o grupo nem precisa ser tão numeroso. Em Dogville, existiam apenas quinze pessoas. Basta uma família de oito ou nove membros. A exemplo dum outro filme recente (este bem ruim), desses "baseados num caso real": duas irmãs são deixadas pelos pais a morar com família amiga e, uma delas, sofre destino semelhante a Nicole. Bastam sete, ainda que sejam anões, vide a minha versão de Branca de Neve. Bastam dois, como no conto A Intrusa de Borges. Apenas dois e seu nome será legião. Como os demônios. Contudo, uma coisa é certa: nenhuma dessas histórias, reais ou imaginárias, acaba bem, daí soar tão falso o final dado por Lars von Trier.
De forma que agora eu sei por que algo nesse filme me tocou tão fundamente: quando uma história atinge a tragicidade do mito, ela volta a ser verdade.
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