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Congresso em Foco
11/12/2005 | Atualizado 12/12/2005 às 17:41
Edson Sardinha
Ministro da Educação de Lula por 13 meses, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) converteu-se num crítico implacável do governo desde que deixou o ministério, demitido por telefone, em janeiro de 2004. Para Cristovam, Lula não deixa nenhum legado, não tem visão de nação nem projeto de governo, não liga para a educação e, ainda por cima, freia os movimentos sociais. "É o governo do 'como fazer', e não o governo do 'o que fazer'."
Pré-candidato pelo PDT ao Planalto, o senador diz que Lula é o melhor presidente para as elites. "Como Serra é do sistema, ele pode, de repente, fazer gestos independentes. Lula não vai poder. Mas Serra é uma ameaça ao sistema porque não vai conseguir controlar os movimentos sociais", avalia.
Além de agradar ao sistema, o presidente ainda é o candidato mais forte em 2006, segundo o pedetista, por causa do carisma e do universo de 10 milhões de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa-Família. "Lula trabalha pontualmente, não tem visão de nação. Ele não analisa a repercussão dos projetos para o Brasil daqui a 20 anos."
Mágoa do presidente, Cristovam garante não ter. "Eu tenho uma grande frustração por ver cortada a chance de ele, eu e o PT ficarmos na história do Brasil. Nós íamos erradicar o analfabetismo no Brasil", lamenta o pedetista, ao criticar a interrupção do programa de erradicação do analfabetismo iniciado em sua gestão. "Lula nem marca tem, porque a estabilidade (monetária) não é marca dele, o Bolsa-Família é uma continuação do Bolsa-Escola. Comecei a sentir isso quando era ministro e vi os projetos de educação serem barrados. A falta de interesse do presidente em relação à educação é total."
Livre na ilha deserta
Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, Cristovam afirma que, ao se ver livre do chamado núcleo duro do governo, liderado pelos ex-ministros Luiz Gushiken e José Dirceu, Lula caiu no isolamento político. "Antes, Lula era prisioneiro, agora é isolado, como um homem livre numa ilha deserta. Com quem Lula discute os destinos do Brasil quando ele quer refletir?", questiona.
Se, por um lado, Lula se libertou; por outro, o PT ainda não, avalia o pedetista. "O PT vai ficar de cinco a dez anos voltado para a sua briga interna, pra tentar se encontrar, e não para formular um projeto para o Brasil. O PT é um partido prisioneiro do PT pelos próximos dez anos", observa. Para ele, o PT é um partido de corporações que faz política voltada para São Paulo. "É um governo de política paulista com concessões ao resto do Brasil."
A universidade e o convento
Reitor da Universidade de Brasília (UnB) entre 1985 e 1989, Cristovam não alivia nem mesmo com a comunidade universitária. "Professor universitário - e eu sou professor universitário - é muito progressista para o mundo, mas muito conservador para a universidade. Ele não quer mudar nada. Acha que a universidade está muito bem", critica.
Para o senador, a universidade pública foi abandonada pelos últimos governos porque deixou de mostrar ao país a sua importância: não conseguiu acompanhar a velocidade do conhecimento no mundo e pagou pela falta de um projeto de nação.
"As universidades estão vivendo o mesmo problema que os conventos viveram mil anos atrás. Estão se negando a trazer pra dentro delas o que sai de novo por aí. Se não fizer a reforma, as universidades podem ficar como os conventos do século 21", compara. "Os monges foram preguiçosos para enfrentar a realidade da dinâmica aristotélica. Os professores também estão sendo assim, pouco ousados", completa.
Congresso em Foco - O senhor sempre foi um defensor da política econômica do governo Lula e um crítico da política social. A atual política econômica não está comprometendo a social?
Cristovam Buarque - Comprometendo a política social, não! Política econômica é uma coisa. Política social é outra. Elas se tocam no orçamento. O que tem que se discutir é se a distribuição de recursos, dentro do orçamento, está afetando o social. Aí eu diria que sim. Mas, pra mim, o que mais afeta a política social é a falta de uma política social. Nós temos é uma política assistencial.
Qual a diferença entre a política social e a assistencial?
A diferença é que a política assistencial mantém as pessoas vivas. A política social faz com que a pessoa suba na vida. Uma coisa é dar uma Bolsa-Família, de R$ 80 ou R$ 150. Isso não tira ninguém da pobreza. Outra coisa é fazer uma revolução educacional, dobrar o salário e exigir mais qualificação dos professores. Essa segunda é transformadora. A primeira é assistencial. Se houvesse política social, a gente poderia começar a analisar quais são os recursos disponíveis no orçamento e ver se uma parte substancial é comprometida com juros e superávit. Teríamos de dizer se a dívida está impedindo a execução dos projetos sociais.
Mas aí não envolve a política econômica?
Ainda aí não é política econômica. É política orçamentária: preferir pagar juros a pagar professores. Você pode dizer: "Mas não pagar juros é uma ruptura da política econômica". Não. É uma ruptura da relação com os bancos. Política econômica é outra coisa. Por exemplo, a gente vai colocar ou não a estabilidade monetária como prioridade? Eu defendo que o Brasil continue mantendo. Se a inflação voltar, quem vai perder mais são os pobres. A inflação é, sobretudo, anti-social. Estabilidade monetária é uma condição para as políticas sociais. Isso tem a ver com política econômica. Eu disse, em 1998, que Malan (ministro da Fazenda no governo FHC) deveria ficar por 100 dias, porque precisava de um período de transição. Em 2002, entendia que não era mais o Malan, mas não bastavam mais 100 dias. Só que agora já faz 1.100 dias. Está na hora de alguns ajustes, sobretudo aqueles que permitam a retomada do crescimento.
Que tipo de ajuste é necessário?
A minha proposta é pensar a política social como instrumento de crescimento. Em vez de tomar a idéia de que é preciso crescer para resolver o problema social, dizer que a solução do problema social é um vetor de crescimento.
De que forma isso é possível na prática?
Por meio de gastos de recursos públicos para gerar emprego que sirva para produzir o que os pobres precisam. Você pode contratar 500 mil trabalhadores desempregados para colocar água e esgoto nas casas. Ataca-se a crise social, colocando água e esgoto, e gera-se uma indução econômica, empregando 500 mil pessoas, que vão comprar camisa e sapato. Isso vai gerar emprego na indústria de confecção e na indústria de equipamentos. Chamo isso de crescimento pela base, em vez daquilo que a gente vê no Brasil, que é o crescimento pelo topo.
A dificuldade em fazer o crescimento pela base indica que o governo Lula tinha um projeto de poder e não de governo, como alega a oposição?
Exatamente. Tem um projeto de poder sem um projeto de governo transformador. Projeto de governo tem, mas é de governo de gerenciar o que está aí. É o governo do "como fazer", e não o governo do "o que fazer".
A partir de que momento o senhor começou a perceber isso?
Sempre falei isso. Em 1992 escrevi um livro chamado A Revolução na Esquerda e a Invenção do Brasil, em que dizia que a esquerda tinha que inventar um Brasil novo e, para isso, ela tinha de mudar. Eu achava que o partido que mais tinha condições de fazer isso era o PT.
"Lula não tem legado para deixar em nenhuma área. Um legado em que a gente possa dizer: isso fica pra sempre"
E quando o senhor deixou de acreditar que o PT poderia fazer isso?
Depois de dois anos de governo. Lula não tem legado para deixar em nenhuma área. Um legado em que a gente possa dizer: isso fica pra sempre. Não tem, como JK fez a industrialização, como o próprio Sarney fez a redemocratização.
O legado de Fernando Henrique foi a estabilidade monetária?
Mas a estabilidade não é um legado, porque depende dos presidentes que vierem. Mas Fernando Henrique deixou uma marca. Agora, Lula nem marca tem, porque a estabilidade não é marca dele, o Bolsa-Família é uma continuação do Bolsa-Escola. Comecei a sentir isso quando era ministro e vi os projetos de educação serem barrados. A falta de interesse do presidente em relação à educação é total. Depois, quando começou a crise do mensalão, percebi que o PT não daria aquele passo que eu imaginava como um partido da transformação social, com um projeto nacional.
Por quê?
Porque o PT vai ficar de cinco a dez anos voltado para a sua briga interna, pra tentar se encontrar, e não para formular um projeto para o Brasil. O PT é um partido prisioneiro do PT pelos próximos dez anos.
"Lula trabalha como presidente do mesmo jeito que trabalhava com as tendências do PT e com os sindicatos"
Mas por que o PT ficou prisioneiro de si?
Por dois motivos. Agora, por causa da crise ética, da desmoralização. Antes, porque era um partido de corporações, não um partido de nação. Isso eu sempre disse, antes mesmo de ter saído do partido. Mas o PT continuou sendo - e essa é minha surpresa, porque acreditava que ele fosse mudar no governo - um partido de corporações. Lula trabalha como presidente do mesmo jeito que trabalhava com as tendências do PT e com os sindicatos.
"Se você perguntar a Lula como ele quer que seja o Brasil daqui a 20 anos, ele vai responder: 'Um Brasil em que todos tomem café, almocem e jantem'. Isso não é suficiente para um presidente da República. Isso seria suficiente para Betinho, não para o presidente"
O senhor pode dar um exemplo de como isso acontece?
Ele faz o ProUni (Programa Universidade para Todos). Aí acha que está fazendo uma grande coisa para a universidade. Está fazendo um bom projeto social para um grupo de estudantes, 150 mil, mas não está mudando a universidade. Lula trabalha pontualmente, não tem visão de nação. Ele não analisa a repercussão dos projetos para o Brasil daqui a 20 anos. Se você perguntar a Lula como ele quer que seja o Brasil daqui a 20 anos, ele vai responder: "Um Brasil em que todos tomem café, almocem e jantem". Isso não é suficiente para um presidente da República. Isso seria suficiente para Betinho, não para o presidente.
É possível atribuir essa falta de visão de nação à baixa escolaridade do presidente?
Não, absolutamente. O Lula é um dos homens mais inteligentes, brilhantes e perspicazes que já apareceram na história do Brasil. O fato de ele não ter tido formação formal não tem nada a ver com isso. Lula é um PhD na vida brasileira, em política, em manejo das coisas. Lula teve uma grande formação, não foi dentro da universidade, mas teve.
Mas o chamado núcleo duro tinha todo aquele poder sobre Lula?
Claro. Num discurso que fiz no Senado eu dizia: "Liberte a esperança, companheiro presidente". Eu dizia que o presidente estava prisioneiro de um círculo. Seis pessoas, todas paulistas, não por nascença, mas por fazerem política em São Paulo. E que ele não falava com a oposição, nem com o Congresso. Acho que não tem cinco senadores para os quais Lula tenha telefonado nesses três anos.
O senhor teve algum contato com ele depois que deixou o ministério?
Nenhum. Só de apertar a mão em alguns desses eventos sociais em que eu ia quando era presidente da Comissão de Relações Exteriores. Nunca sentei pra conversar com ele depois, nem recebi nenhum telefone do presidente.
O senhor guarda alguma mágoa dele?
Mágoa, não. Eu tenho uma grande frustração por ver cortada a chance de ele, eu e o PT ficarmos na história do Brasil. Nós íamos erradicar o analfabetismo no Brasil. Não há razão para que Lula tenha parado o programa de erradicação de analfabetismo. Tenho aqui na parede uma foto minha e dele recebendo um prêmio da Unesco pelo Programa Brasil Alfabetizado, ainda no primeiro ano de governo. Por que ele parou isso? Ele continua com o programa de alfabetização, mas acabou com o programa de erradicação. Não acredito nisso.
"Imagine um cara condenado a morte por razões políticas que, na hora da morte, vai fazer discurso para os soldados que vão fuzilá-lo. Foi isso que ele (Dirceu) fez. Não falou para a sociedade nem para a história"
Com a queda dos ex-ministros José Dirceu e Luiz Gushiken, o presidente se libertou?
Ele se libertou, mas ficou isolado. Antes, Lula era prisioneiro, agora é isolado, como um homem livre numa ilha deserta. Com quem Lula discute os destinos do Brasil quando ele quer refletir? Dirceu era grande demais para a Casa Civil, e foi pequeno demais no discurso de despedida dele da Câmara. Fiquei muito frustrado. Deveria ter feito um discurso sobre as crenças que o levaram a dedicar a vida, a ser preso, exilado, banido e correr o risco de ser assassinado. Um homem que tivesse compromisso com um projeto de nação não faria um discurso de advogado, como o que fez. Eu faria mais, levaria impresso o discurso para cada deputado. Quem vai ler aquele discurso de José Dirceu daqui a cinco anos? Ninguém. Ele tinha de ter chegado ali e não ter dado importância à cassação. Imagine um cara condenado a morte por razões políticas que, na hora da morte, vai fazer discurso para os soldados que vão fuzilá-lo. Foi isso que ele fez. Não falou para a sociedade nem para a história. Na hora de ser fuzilado, o condenado tem direito a dar um grito. "Viva a República!", como gritavam os espanhóis durante a guerra civil. Na Câmara, Dirceu tinha uma hora pra falar. Ele demonstrou como esse governo é pobre de sentimento nacional.
"É um governo de política paulista com concessões ao resto do Brasil"
Mas não há ninguém no governo com esse sentimento?
Lamentavelmente não vejo personagens com preocupação de longo prazo, com sentimento de estadismo. Uma das causas disso é a reeleição. O presidente senta ali achando que tem oito anos, e não quatro. E que no meio tem uma eleição. Ele só pensa no mês de outubro de quatro anos depois. Não pensa em 2.020. Se Juscelino tivesse reeleição na época dele, teria sido um fracasso como presidente. Não haveria 50 anos em cinco. Diria 50 anos em dez. Gastaria os primeiros cinco anos querendo ser reeleito, em vez de querer fazer Brasília ou industrializar o país. Acho que a reeleição foi um desastre. Agora, juntou-se a reeleição com um grupo sem projeto nacional, sem sentimento de nação. Uma prova disso é como eles se comportavam presos à política de São Paulo. As disputas de São Paulo ocorriam dentro do próprio PT e do próprio governo. É um governo que só consegue pensar, do ponto de vista político, em São Paulo. Pode até fazer projetos como a transposição do São Francisco e a Transnordestina, mas isso aí são concessões ao resto do Brasil. É um governo de política paulista com concessões ao resto do Brasil.
"Imagine eu, candidato, dizer a esses 10 milhões que agora só recebem se o menino for pra aula! Não vou ter um voto desses. Ele tem um programa que chega a 10 milhões de famílias, um tremendo carisma e é o melhor candidato para as elites"
Isso pode trazer complicações para o projeto de reeleição do presidente?
Há o risco, mas acredito que Lula ainda é o candidato mais forte. Não se pode subestimar a capacidade dele. Ao contrário, acho que ele é muito forte por várias razões. Primeiro, porque mantém o carisma dele. Lula fala com o povo. Segundo, porque pegou um programa, o Bolsa-Escola, e juntou a outros diversos, aumentando o número de pessoas beneficiadas. Hoje tem 10 milhões de famílias recebendo, 50 milhões de pessoas envolvidas nisso, sem exigir nada em troca. Está na lei que precisa da freqüência-aula, mas não se exige. Imagine eu, candidato, dizer a esses 10 milhões que agora só recebem se o menino for pra aula! Não vou ter um voto desses. Ele tem um programa que chega a 10 milhões de famílias, um tremendo carisma e é o melhor candidato para as elites empresariais. Não digo a classe média e o rico em geral. Mas aqueles que dominam o país.
Por que Lula é o melhor candidato para a elite?
Porque ele vai ser obrigado a seguir tudo o que essas pessoas quiserem, porque o PT vai ser tão pequenininho que ele vai governar com os partidos de direita. Ao mesmo tempo, ele representa a possibilidade para o sistema de controlar o povo. Veja como os movimentos sociais estão parados hoje. O que é a UNE (União Nacional dos Estudantes) hoje? Uma instituição de defesa do governo Lula. Com o Serra, mesmo que ele tenha sido presidente da UNE, ela vai fazer oposição a ele. Veja a reunião dos movimentos sociais em geral. Agora mesmo teve uma conferência das cidades. Os sem-teto amaciaram. O MST é muito mais manso hoje do que era no governo Fernando Henrique Cardoso. Lula representa o melhor presidente para o sistema.
"Serra é uma ameaça ao sistema porque não vai conseguir controlar
os movimentos sociais"
Melhor para o sistema, e pior para o país?
Não sei. Vai depender do outro (candidato). Apesar disso, Lula ainda pode ser melhor. Para o sistema, Lula é mais confiável do que Serra. Como Serra é do sistema, ele pode de repente fazer gestos independentes. Lula não vai poder. Mas Serra é uma ameaça ao sistema porque não vai conseguir controlar os movimentos sociais.
Os movimentos sociais ressurgirão com mais força num eventual governo Serra?
E com o PT na oposição. No governo federal, o PT está freando os movimentos sociais. Nos estados, antes de Lula ser presidente, o PT não controlava os movimentos sociais. Basta ver as greves contra Erundina (em São Paulo), contra mim (no Distrito Federal) e Vitor Buaiz (no Espírito Santo). Agora, nem Erundina, nem Buaiz, nem eu somos Lula. Aí não é o PT, é a figura de Lula, que é maravilhosa do ponto de vista carismático. Só que ele não pôs esse carisma e essa liderança a serviço de uma mudança de rumo. Imagine Lula nos primeiros meses de governo propondo um grande pacto nacional pela educação, dizendo que ia precisar de R$ 10 bilhões! Veja o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico, que está pra ser votado na Câmara), que entreguei pra ele em 2003. Naquele ano, ele aprovava aqui com R$ 4,7 bilhões, que era o valor que tínhamos proposto. Agora, ele está botando R$ 1 bilhão. Vai chegar a R$ 4 bi daqui a quatro anos. Em 2003, ele aprovava dez. Agora está pedindo aos céus pra aprovar. Demorou. Quando Lula trouxe os projetos das reformas tributária e da Previdência ao Congresso eu estava com ele. Quando estávamos saindo, fiz um desses gestos que acabaram me levando a ser demitido por telefone. Eu disse: "Presidente, bela tarde esta! O presidente da República, com o seu prestígio, trazendo dois projetos de reforma ao Congresso. Mas, presidente, seria muito melhor se tivesse trazido três: as reformas da Previdência, tributária e social - educação e saúde".
"Ele me olhou com a cara de furioso. Era como se tivesse tirado um brinquedo da mão de uma criança, por que ele estava deslumbrado ali"
E qual foi a reação do presidente?
Ele me olhou com a cara de furioso. Era como se tivesse tirado um brinquedo da mão de uma criança, por que ele estava deslumbrado ali. No fundo, foi uma indelicadeza minha, uma sinceridade pouco oportuna. Poderia ter deixado pra dizer isso em outro dia. Ele não levou essa reforma social, que teria a cara dele. Eu dizia: toda criança tem que ter direito a uma vaga na escola no dia que fizer quatro anos, o ensino médio será obrigatório, os governadores vão ter de se ajustar a isso, vamos pegar dinheiro para aumentar o salário dos professores, mas só pra aqueles que passarem em concurso federal. Hoje, se Lula disser isso, perde o apoio dos professores, porque perdeu a credibilidade. Foi uma pena para a história do país Lula não usar seu carisma, sua liderança, sua competência política maravilhosa para dobrar o Brasil.
Em agosto do ano passado, o senhor disse ao Congresso em Foco que havia perdido a esperança no governo, mas mantinha esperança em Lula. O senhor perdeu a esperança em Lula?
Volto a insistir que vai depender do outro candidato. Tanto é que estou aceitando o lançamento (da candidatura à sucessão presidencial) pelo PDT. Acho que o PDT vai ter uma proposta melhor que Lula.
Mas o senhor vê chance de chegar ao segundo turno?
Pouca. Pouca, não! Pouquíssima. Mas vamos fazer um discurso diferente. De um lado, teremos o PT e o PSDB dizendo a mesmíssima coisa e se acusando. O PT fazendo propaganda e o PSDB fazendo crítica. Vamos ter a figura maravilhosa da Heloísa Helena, com o papel fundamental de um discurso mais distante, utópico. Tem uma brecha aí para um discurso transformador socialmente e responsável economicamente.
Esse discurso vai se sustentar em que pilares?
Educação, obviamente. Mas estou colocando três pilares, dispostos não em ordem de hierarquia, mas como um triângulo, com três "Rs": retomada da nacionalidade, reversão da desigualdade e recuperação da credibilidade. Para isso, precisaremos aplicar uma porção de "Es": "e" de emprego, de estabilidade monetária e de escola. Estabilidade monetária tem de ser um compromisso radical, porque ela é uma condição, sobretudo, da credibilidade. O presidente que deixar voltar a inflação perde a credibilidade. A inflação é uma corrupção. Você pode ser corrupto tirando R$ 100 do bolso do povo ou deixando R$ 100 no bolso do povo e aumentando o preço das coisas em R$ 100. Esses três pilares passam especialmente pela educação. A reversão da desigualdade depende de muita coisa, mas, sobretudo, de duas: revolução na educação, como fizeram vários países como Irlanda e Coréia, e crescimento econômico pela base. Não o crescimento pelo topo, mas pela base.
Como se pode fazer esse crescimento pela base?
A gente cresceu dizendo: vamos fabricar automóveis porque, no fim, até os flanelinhas se beneficiam. A gente poderia dizer: vamos beneficiar o flanelinha pagando pra que ele estude, em vez de cuidar de carro. Aí ele vai comprar camisa e sapato. Isso vai gerar emprego nas indústrias de construção e de equipamentos. Ele vai terminar engenheiro, comprando um carro.
Mas como é possível fazer com que essa proposta não fique só no discurso e possa ser executada?
Fazendo com que, logo depois das eleições, isso se transforme em um projeto de todos, como Fernando Henrique conseguiu com a estabilidade monetária. O real virou um projeto de todos. Se o real virou um projeto de todos, por que a educação não vira um projeto de todos? Até porque esse projeto do qual estou falando não vai ser feito no prazo de quatro a oito anos. Vai precisar de 15, 20, talvez 30 anos. Tem que haver, desde o primeiro momento, a definição de alguns objetivos que sejam de interesse comum, de todos os partidos. O beneficiário político não pode ser só o presidente, precisa ser o conjunto. Por exemplo, por que o ministro da Educação tem de ser escolhido apenas pelo presidente da República? Por que ele não pode chamar os partidos e dizer "quero escolher um ministro do conjunto de vocês, e não o demitirei sem consultá-los"? Vai ser o ministro da nação, e não o ministro do governo. Se não fizer isso, não terá tranqüilidade.
Insisto: mas como não deixar que isso se resuma a um discurso?
A grande discussão vai ser a junção do discurso com a história do candidato. O discurso podem todos pegar.
Mas o discurso de Lula sempre foi marcado pelo social. No entanto, o senhor mesmo diz que ele não conseguiu implantá-lo.
Mas ele não tem mais credibilidade para isso. O discurso de Lula não vai poder mais ser social, a não ser essa comparação besta que ele faz dos programas dele com os de Fernando Henrique.
Nem na educação, na qual o senhor teve uma participação, não ficará nenhuma marca do governo Lula?
Não, não ficará. A única marca que poderia ter ficado, em quatro anos, era a alfabetização. Hoje, nós estaríamos com 12 milhões de alfabetizados se tivéssemos continuado com o programa (de erradicação do analfabetismo). Lula poderia ter ficado como o presidente que erradicou o analfabetismo. Essa era a marca. Do resto poderiam ter ficado medidas que levariam mais tempo a dar mais resultados. Comecei algumas coisas que não deixariam marca porque não se realizariam em quatro anos. Se tivéssemos continuado com a idéia do projeto Escola Ideal, teríamos hoje 29 cidades - pouquíssimas, é verdade - com horário integral em todas as escolas, laboratório de computador em todas as salas. A única marca possível (do governo Lula) era a erradicação do analfabetismo. Outra coisa, já poderíamos ter avançado na reforma universitária. O Fundeb poderia ter sido aprovado em março de 2004. Dificilmente será aprovado este ano.
O governo federal destina pouco mais de 4% do PIB para a educação. O problema é o percentual ou a forma com que aplica esses recursos?
Sobretudo a forma de gastar, mas é também o percentual. O percentual é uma coisa vaga. Tem país em que 4% é muito. A gente precisa gastar de imediato mais R$ 7 bilhões e chegar a R$ 20 bilhões ao longo dos próximos quatro ou cinco anos. Hoje, o país inteiro, não só o governo federal, gasta R$ 61 bilhões. O problema mais sério é que não se gasta direito. Não se gasta bem e se gasta de forma desigual. A educação fundamental é municipal. Nós temos municípios ricos e municípios paupérrimos. As nossas crianças estão entregues aos prefeitos. Por isso, defendo a nacionalização da educação. Mas defendo a nacionalização com uma lei de responsabilização educacional, que faça com que o prefeito seja obrigado não a gastar, mas a realizar. Hoje a gente incentiva o prefeito a gastar muito, e não a fazer muito. Pra mim, temos que definir metas. Se pretendemos erradicar o analfabetismo em quatro anos, temos que alfabetizar 25 milhões no primeiro e subir ano a ano. Se você vai fazer isso gastando mais ou menos, é uma questão da sua competência. Tem que ter mais dinheiro, mas isso não é o principal. O principal é estabelecer metas e responsabilizar o prefeito para cumpri-las. Se não cumprir, fica inelegível.
O governo federal destina boa parte dos recursos para o ensino superior. Mas as universidades continuam sucateadas. Qual é o problema?
A universidade deixou de mostrar para o Brasil a importância dela. Essa é a verdade. E os governos abandonaram a universidade. A universidade ficou velha, não deu o salto que deveria dar.
Em que momento se deu esse envelhecimento?
É um processo que tem dois lados. Um é a velocidade com que o conhecimento avançou no mundo. Nós não fomos capazes de avançar porque a estrutura universitária é amarrada. No Brasil, pra se fazer um doutorado, levam-se cinco anos. Quando você termina de fazer o doutorado, já está superado. Em cinco anos, todos os conhecimentos estão superados. Perdemos a velocidade com o avanço do conhecimento e com a forma com que se distribui o conhecimento. Em segundo lugar, porque o Brasil deixou de ter um projeto de nação. Se você não tem um projeto de nação, não tem projeto de universidade.
"A única coisa que vejo no governo Lula é a possibilidade de destinar mais dinheiro para a universidade, porque é um governo que reage às pressões corporativas. Analfabeto não tem sindicato, criança não faz greve"
O senhor vê alguma possibilidade de mudança ainda no governo Lula?
A única coisa que vejo no governo Lula é a possibilidade de destinar mais dinheiro para a universidade, porque é um governo que reage às pressões corporativas. Analfabeto não tem sindicato, criança não faz greve. Acho que vai dar mais dinheiro e não vai cobrar as mudanças que precisam ser feitas, porque as corporações não querem fazer. Professor universitário - e eu sou professor universitário - é muito progressista para o mundo, mas muito conservador para a universidade. Ele não quer mudar nada. Acha que a universidade está muito bem.
A proposta de reforma universitária, em discussão, muda essa mentalidade?
Tem que mudar. Senão não se faz, porque universidade não é como prédio, em que o operário manda no tijolo. A gente não manda na cabeça dos professores. Ou se faz a reforma com o apoio dos professores, ou não se faz.
"As universidades estão vivendo o mesmo problema que os conventos viveram mil anos atrás. Estão se negando a trazer pra dentro delas o que sai de novo por aí"
E se não se fizer a reforma?
Se não fizer, vai surgir uma coisa fora das universidades, que vai substituí-las. É uma coisa que estou chamando de pós-universidade, que ainda não sei que nome vai ter. A palavra universidade também não existia. Existia convento. Por volta do ano 1.000, os conventos deixaram de atender as exigências de evolução do pensamento. O pensamento europeu descobriu Aristóteles, Platão, a lógica, o pensamento independente da relação divina, dos textos da bíblia. Os conventos não conseguiram trazer Aristóteles para dentro. As pessoas criaram as universidades. As universidades estão vivendo o mesmo problema que os conventos viveram mil anos atrás. Estão se negando a trazer pra dentro delas o que sai de novo por aí. Se não fizer a reforma, as universidades podem ficar como os conventos do século 21.
E quais seriam as principais características dessa pós-universidade?
São 12 ou 13 características. Essa pós-universidade não vai ter endereço geográfico, vai funcionar por endereço eletrônico. Não vai ter exame pra entrar. Todo mundo entra nela, você pode não sair. Ela não vai ter nacionalidade. Daqui, você vai fazer um curso de uma disciplina numa universidade na Inglaterra, outro na universidade de Pernambuco, e vai ter sistema de computador traduzindo automaticamente. Ela não vai ter diploma, vai fazer com que os seus alunos sejam respeitados pela qualidade do seu curso. E o documento que ela vai oferecer, dizendo que o aluno concluiu, será provisório. Vai durar quatro ou cinco anos. Na área de informática, vai durar uns dois anos. Em outras áreas pode durar mais. Ela vai ser permanente. O aluno nunca vai deixar de ser aluno. Nessa pós-universidade não haverá ex-aluno.
O senhor vê ganhos com essa mudança?
Claro. Primeiro, por uma questão de sobrevivência. Sobrevivência, não. Os conventos estão aí até hoje, mas deixaram de ser os geradores de pensamento. Hoje, a universidade não é mais a vanguarda do conhecimento. Aqui (em Brasília) temos o Hospital Sara Kubitschek. Ele está mais na vanguarda como formador de pessoal do que as faculdades de medicina. Os Correios têm a universidade dos Correios. O McDonalds montou uma faculdade McDonalds, porque nutricionistas e engenheiros não serviam a ela. Estão surgindo as universidades corporativas. Vocês aprendem mais nos jornais do que nas faculdades. Não creio que a Microsoft contrate gente porque saiu da universidade. Contrata o profissional porque ele é bom pra ela.
De que forma isso está ocorrendo no Brasil?
Sim, mas na forma de coisas paralelas. Não dentro das universidades. Essa é minha angústia como professor universitário. Gostaria que as universidades se transformassem, que a gente não precisasse inventar uma pós-universidade e continuasse com o nome de universidade por mais mil anos. Do jeito que está, ela resiste como os conventos ainda resistem. Os monges foram preguiçosos para enfrentar a realidade da dinâmica aristotélica. Os professores também estão sendo assim, pouco ousados.
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