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Análise

Quando símbolos importados ameaçam a democracia brasileira

O cartaz em Manaus que revela mais sobre nós do que sobre Charlie Kirk.

Eduardo Vasconcelos

Eduardo Vasconcelos

24/9/2025 9:00

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Em uma manhã comum na movimentada zona centro-sul de Manaus, motoristas que passavam em frente ao Carrefour de Flores se depararam com um cartaz estendido sobre a passarela. Nele, a imagem do comentarista conservador americano Charlie Kirk acompanhada da frase: "Tentaram calar sua voz, mas a verdade nunca será silenciada". Ao lado, logotipos de grupos autodenominados conservadores e a bandeira nacional. O episódio pode parecer isolado, uma curiosidade exótica sobre como narrativas internacionais se infiltram em contextos locais. Mas a cena, repetida em diferentes capitais, revela muito mais sobre a sociedade brasileira contemporânea do que sobre a trajetória de um ativista norte-americano.

Este artigo se propõe a investigar criticamente o significado desse gesto, destrinchando suas camadas psicológicas, sociais, fisiológicas e políticas e situando-o dentro do longo histórico brasileiro de apropriação simbólica. Mais que uma faixa, trata-se de um sintoma do mal-estar democrático que nos atravessa e de como símbolos estrangeiros alimentam disputas internas, radicalizando o espaço público.

1. A importação de um mártir estrangeiro

Charlie Kirk, fundador da organização Turning Point USA, tornou-se nos Estados Unidos um dos principais rostos da direita conservadora jovem, ligado ao movimento "Make America Great Again" (MAGA) e conhecido por atacar universidades, movimentos progressistas e políticas de diversidade. Em setembro de 2025, durante uma palestra em Utah, foi assassinado com um disparo no pescoço. Sua morte, amplamente noticiada, gerou comoção entre conservadores mundo afora.

No Brasil, grupos ligados à militância bolsonarista e a organizações como o Foro do Brasil rapidamente incorporaram sua imagem como símbolo de luta contra a censura. A faixa em Manaus não é isolada: representa uma estratégia de transnacionalização simbólica, em que líderes e mártires estrangeiros são apropriados como bandeiras para agendas locais.

Esse processo não é novo. Ao longo da história, o Brasil sempre importou narrativas externas para reforçar identidades políticas internas. Nos anos 1960 e 1970, durante a Guerra Fria, a retórica anticomunista ecoava diretamente de Washington. Hoje, em plena era digital, a transferência é mais veloz: memes, vídeos e mártires cruzam fronteiras em segundos.

2. A chave psicológica: por que símbolos de perseguição colam

A faixa em Manaus não comunica apenas solidariedade. Ela aciona mecanismos psicológicos profundos.

Identidade ameaçada: Ao afirmar que "tentaram calar sua voz", os manifestantes constroem uma narrativa de ameaça coletiva. Mesmo que o episódio tenha ocorrido nos Estados Unidos, o grupo local se projeta como alvo potencial da mesma perseguição. É a psicologia da vitimização competitiva: quanto maior a sensação de ataque, mais coeso o grupo se torna.

O poder do martírio: Símbolos de sacrifício têm forte apelo emocional. O mártir é visto como alguém que paga o preço máximo por defender "a verdade". Psicologicamente, isso confere status moral superior ao grupo que o reverencia. No Brasil, país de tradição religiosa, a lógica sacrificial encontra terreno fértil.

Dissonância cognitiva e simplificação: Em contextos polarizados, admitir complexidade gera desconforto. Narrativas de silenciamento oferecem alívio: se alguém foi morto, não há nuance - trata-se de perseguição. Esse atalho cognitivo fortalece certezas e bloqueia diálogo.

Viés de confirmação: Quem já acredita em censura ideológica interpreta qualquer episódio violento como prova de suas convicções. A morte de Kirk não é vista como fato isolado, mas como evidência universal de que "a direita está sob ataque".

3. A chave fisiológica: como o corpo responde

A ciência das emoções mostra que símbolos de ameaça não atuam apenas na mente, mas no corpo.

Ativação da amígdala: Palavras como "calar" e "silenciar" disparam respostas de alerta, aumentando batimentos cardíacos e atenção seletiva.

Dopamina e recompensa social: Postar a foto do cartaz e receber curtidas gera pico de prazer químico. O ativismo vira hábito recompensado.

Cortisol e simplificação cognitiva: O estresse crônico da crise política brasileira estimula respostas rápidas e maniqueístas: "nós contra eles".

Contágio emocional: Emoções intensas como indignação e medo se espalham mais rápido que argumentos racionais. O cartaz, nesse sentido, funciona como gatilho viral.

A fisiologia, portanto, ajuda a explicar por que mensagens simples e dramáticas superam análises longas e nuançadas.

4. A chave social: redes, igrejas, passarelas

A manifestação em Manaus ilustra como diferentes esferas sociais se entrelaçam.

Redes digitais: O cartaz não existe apenas para quem passa na rua. Ele foi pensado para ser fotografado, postado e viralizado. O ato físico é subordinado à lógica da imagem digital.

Religião e moralidade: Grupos conservadores religiosos encontram nesses símbolos uma forma de reforçar valores morais. O mártir estrangeiro é traduzido como "irmão de fé" na guerra cultural.

Comunidade e pertencimento: A faixa funciona como marcação territorial: "estamos aqui, somos muitos, defendemos a verdade". Isso cria coesão entre simpatizantes e intimida opositores.

Mídia fragmentada: Portais e perfis conservadores amplificam o gesto, enquanto veículos tradicionais o noticiam como curiosidade. Cada bolha lê a cena de forma distinta, reforçando a polarização.

5. A chave política: a guerra cultural como motor

A apropriação de Kirk revela como a política brasileira se insere numa lógica global de guerras culturais.

Narrativa do silenciamento: Ao se apresentarem como vítimas, grupos conservadores legitimam posturas de endurecimento, como ataques a imprensa, universidades e tribunais.

Mobilização de baixo custo: Uma faixa gera repercussão desproporcional, funcionando como propaganda barata e eficaz.

Agenda importada: Problemas dos Estados Unidos - "woke culture", debates sobre armas e diversidade - são importados e colados em disputas locais, desviando a atenção de pautas estruturais como desigualdade e saúde pública.

Polarização como estratégia: A cada mártir, reforça-se a divisão binária: "nós, os silenciados" contra "eles, os censores". Essa lógica corrói a mediação democrática.

Faixa em Manaus sobre Charlie Kirk.

Faixa em Manaus sobre Charlie Kirk.Reprodução/Redes sociais

6. A história brasileira como terreno fértil

Para entender por que esse tipo de narrativa prospera aqui, é preciso revisitar nossa história.

Personalismo e messianismo: De Vargas a Bolsonaro, líderes carismáticos são tratados como salvadores ou demônios. Símbolos de martírio encaixam-se nesse imaginário.

Memória autoritária: A ditadura militar (1964-1985) deixou marcas ambíguas. Parte da sociedade romantiza a ordem, enquanto outra defende liberdades. Essa ambivalência gera terreno fértil para narrativas de censura.

Constituição de 1988: Expandiu direitos, mas não consolidou plenamente a cultura do diálogo. O conflito é frequentemente moralizado, não negociado.

Crises recentes: As Jornadas de 2013, a Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a pandemia e os embates entre Executivo e Judiciário alimentaram um ambiente de desconfiança e radicalização.

Religião e política: A força das redes evangélicas e católicas projeta valores morais absolutos no debate público, substituindo muitas vezes argumentos técnicos por juízos religiosos.

7. Impactos diretos na democracia brasileira

O episódio de Manaus é pequeno, mas seus efeitos acumulados não são. Eis os riscos:

Esvaziamento do debate público: Slogans substituem argumentos, reduzindo a democracia a uma guerra de frases de efeito.

Normalização da exceção: Se "nos calaram", tudo se justifica em "defesa própria", inclusive ataques a instituições democráticas.

Importação de conflitos alheios: O Brasil passa a discutir pautas americanas, enquanto problemas nacionais ficam em segundo plano.

Desinstitucionalização: Redes sociais e ruas substituem espaços formais de mediação. O like vale mais que o voto parlamentar.

Risco de violência política: Narrativas de martírio alimentam radicalização, transformando adversários em inimigos a serem eliminados.

Paralisia decisória: A desconfiança nas instituições gera bloqueios em políticas públicas essenciais.

8. O que está em jogo: símbolos versus realidade

Faixas como a de Manaus não são apenas gestos de solidariedade, mas armas retóricas. Operam no campo simbólico, mas seus efeitos são reais: influenciam percepções, moldam identidades e corroem a confiança nas instituições.

O desafio da democracia brasileira é não cair na armadilha de combater símbolos com censura - o que só reforçaria a narrativa de perseguição. O antídoto está em fortalecer educação midiática, transparência algorítmica, regras claras de responsabilização pós-fala e espaços institucionais de diálogo.

9. O outro como cidadão, não inimigo

O cartaz de Manaus, ao exibir um mártir estrangeiro, expõe o quanto a política brasileira está enredada em narrativas globais que pouco dialogam com nossas necessidades urgentes. Mostra também como a psicologia do medo, a fisiologia da indignação e a história de ambivalência democrática convergem para enfraquecer o espaço público.

O risco maior é transformar a democracia num ringue onde símbolos valem mais que argumentos e inimigos mais que cidadãos. O caminho alternativo exige coragem: reafirmar que a voz divergente não deve ser calada, mas escutada e confrontada com ideias, não com slogans.

Se a democracia brasileira sobreviver à tempestade simbólica, será porque escolheu a paciência do diálogo em vez da pressa do martírio.

Entre símbolos e realidade: a encruzilhada da democracia brasileira

A análise do episódio em Manaus revela que, por trás de um cartaz aparentemente banal, desenrola-se um conjunto de dinâmicas psicológicas, sociais e políticas que expõem fragilidades estruturais da democracia brasileira. O uso de símbolos importados, como o de Charlie Kirk, ultrapassa o simples gesto de solidariedade e alcança uma dimensão mais profunda: a de reforçar identidades coletivas por meio de narrativas de vitimização e martírio, ressignificando conflitos externos como se fossem locais. Esse processo não apenas desloca a atenção de problemas nacionais urgentes, mas também cristaliza um imaginário político baseado no medo, no inimigo e na polarização.

Sob o prisma psicológico, o cartaz mobiliza emoções primárias - medo, indignação e compaixão - que ativam tanto a coesão do grupo quanto a demonização do outro. Trata-se de um mecanismo que reduz a complexidade em dicotomias simplistas, favorecendo a reprodução de certezas em detrimento do diálogo crítico. A fisiologia do corpo confirma esse movimento: a indignação mobiliza, mas ao mesmo tempo cristaliza respostas automáticas, condicionadas pelo estresse e pela dopamina do engajamento digital. Assim, símbolos dramáticos triunfam sobre argumentos racionais, enfraquecendo a possibilidade de construção coletiva.

Do ponto de vista social, o episódio evidencia como redes digitais, moral religiosa e disputas políticas se entrelaçam para dar força a narrativas importadas. A faixa não é apenas um artefato físico, mas uma peça calculada para circular no espaço virtual, onde sua potência simbólica é multiplicada por curtidas, compartilhamentos e comentários. Ao mesmo tempo, ela atua como marcador territorial de pertencimento, reafirmando fronteiras entre "nós" e "eles". Nesse sentido, o símbolo estrangeiro funciona como catalisador de uma identidade coletiva marcada pela oposição e pelo ressentimento.

Politicamente, a adoção de mártires externos insere o Brasil numa engrenagem global de guerras culturais, que enfraquecem a democracia ao deslocar a centralidade do debate institucional para o campo emocional e simbólico. A repetição de narrativas de silenciamento e perseguição normaliza a exceção, legitima ataques às instituições e alimenta riscos concretos de violência política. O efeito cumulativo é corrosivo: esvazia-se o espaço público, distorce-se a agenda nacional e mina-se a confiança em mecanismos democráticos de mediação.

O desafio que se impõe, portanto, é romper com essa lógica da importação acrítica de símbolos e da dependência emocional de narrativas de martírio. Psicologicamente, isso implica estimular a capacidade de lidar com a complexidade, resistindo ao apelo das respostas fáceis. Socialmente, exige reconstruir espaços de diálogo que transcendam bolhas digitais e religiosas, revalorizando a escuta do outro como cidadão, não como inimigo. Politicamente, demanda fortalecer instituições que garantam a pluralidade sem recorrer à censura, mas promovendo responsabilidade e transparência.

Em última instância, o episódio do cartaz de Manaus serve como metáfora do dilema brasileiro contemporâneo: ou sucumbimos à tempestade simbólica que transforma a democracia em ringue de slogans e mártires, ou escolhemos a rota mais árdua, porém mais sólida, da convivência democrática pautada no diálogo, na educação crítica e na valorização da diferença. A democracia não se fortalece pelo silêncio imposto, mas pela coragem de sustentar o debate mesmo quando ele é incômodo. Reconhecer esse ponto é o primeiro passo para que símbolos deixem de ser armas e voltem a ser apenas representações - jamais substitutos da realidade.


O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

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