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Gisele Agnelli
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Autoritarismo
16/9/2025 13:00
A morte de Charlie Kirk expôs a distorção da liberdade de expressão nos Estados Unidos, princípio universal manipulado politicamente pela extrema direita no poder. Em vida, Kirk fez do ódio um empreendimento lucrativo: atacava imigrantes, LGBTQIA+, mulheres, negros e professores, vendendo ressentimento como se fosse masculinidade restaurada. Nunca foi censurado pelo Estado - ao contrário, esteve sempre protegido pelo manto da Primeira Emenda. Mas quando um estrangeiro ousa ironizar sua morte, o mesmo governo corre a punir.
Eis o coração do trumpismo: garantir liberdade irrestrita ao ódio que sustenta seu projeto político e, ao mesmo tempo, criminalizar a crítica que ameaça sua narrativa. A Primeira Emenda, que deveria ser universal, torna-se assim instrumento seletivo - escudo para aliados, espada contra opositores.
Kirk era um engenheiro de frustrações. Ao jovem deslocado, vendia a fantasia de que "o mundo roubou seus privilégios". A política autoritária nasce desse pacto: transformar fragilidade pessoal em cruzada moral contra feministas, negros e trans. É a velha promessa patriarcal reempacotada como resistência cultural.
Nos Estados Unidos, protege-se o discurso... mesmo o odioso. No Brasil, protege-se a dignidade humana, ainda que isso limite a fala. O STF já equiparou homofobia e transfobia ao crime de racismo. Nos EUA, o ódio de Kirk é liberdade; no Brasil, seria crime. A divergência não é apenas jurídica: é civilizatória.
A novidade sombria não é a retórica reacionária, mas sua seletividade. Trump não busca proteger a fala em geral, mas apenas a fala útil. A crítica estrangeira é enquadrada como crime migratório, enquanto a retórica supremacista é romantizada como patriotismo. É o estado de exceção dirigido ao estrangeiro, para usar as palavras de Giorgio Agamben.
O episódio do médico brasileiro começou com uma postagem infame no Instagram: ao comentar o assassinato de Charlie Kirk, o neurocirurgião escreveu uma mensagem que não era apenas de mau gosto, mas uma exaltação explícita à execução ('um salve a este companheiro de mira impecável. Coluna cervical). A reação foi imediata. A clínica em que trabalhava anunciou seu desligamento, o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco abriu processo disciplinar, e, em Washington, o vice-secretário de Estado Christopher Landau declarou publicamente que determinaria a revogação de qualquer visto que o médico tivesse, e que ele jamais voltaria a obter entrada nos Estados Unidos.
O anúncio foi feito em rede social, como gesto público de punição e intimidação. O episódio é condenável, mas escancara a política trumpista: visto não é direito, é privilégio. E sua revogação em rede social por um funcionário do governo é mais do que sanção burocrática: é um gesto de poder simbólico, que ecoa extraterritorialmente. O recado é direto: os EUA vigiam e punem até fora de suas fronteiras.
Não podemos esquecer o ecossistema digital. O assassino de Kirk publicava no Discord mensagens com rifles, execuções e violência política explícita, exatamente o tipo de conteúdo que, em tese, já estaria fora da proteção da Primeira Emenda. Mesmo assim, circularam livremente. É o mesmo padrão visto em Charlottesville (2017) e no 6 de janeiro (2021): plataformas que lucram com o tráfego extremista, escondem-se atrás da Section 230 (cláusula que garante às empresas de tecnologia imunidade legal pelo conteúdo publicado por usuários em suas plataformas) e deixam a democracia pagar a conta.
Maria Ressa já alertou: redes não são intermediárias neutras, são armas de guerra informacional. O algoritmo privilegia ódio porque ódio dá engajamento. Kirk foi produto dessa engrenagem. E Trump, ao transformá-lo em mártir, recicla essa lógica para consolidar o trumpismo como culto político.
A discussão não para no Estado. Empresas privadas demitem funcionários que ironizaram a morte de Kirk, pressionadas por campanhas de doxxing e linchamento digital. A justificativa é "cultura corporativa", mas o efeito é político: uma disciplina social que expulsa dissidentes e naturaliza o medo. Não é censura estatal, mas sua versão privatizada.
Celebrar o assassinato de alguém não é liberdade de expressão; é apologia à barbárie. Mas quando o Estado aplica punições seletivas e corporações reforçam o mesmo padrão, estamos diante de um perigo maior: a transformação da liberdade em privilégio político. Se a Primeira Emenda protege apenas os amigos do poder, e o castigo recai apenas sobre os críticos, já não falamos de democracia liberal. Falamos de uma engrenagem autoritária que usa a palavra "liberdade" como fachada. Como lembrava Timothy Snyder, a pós-verdade é o pré-fascismo. Nos EUA de Trump, já não é apenas pré. É ensaio geral de um autoritarismo global.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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