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Gisele Agnelli
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Política internacional
21/10/2025 17:00
No Texas, a legislatura republicana continua traçando mapas como quem grava cicatrizes no território: precisos, permanentes, excludentes. É ali, e não nas urnas, que se decide o poder. Enquanto isso, na Califórnia, um plebiscito colocará Gavin Newsom e Arnold Schwarzenegger em lados opostos sobre o destino de um dos últimos experimentos democráticos vivos nos Estados Unidos: as assembleias populares de redistritamento, criadas para impedir que políticos escolhessem seus próprios eleitores.
O gerrymandering virou a nova arte de governar. Sob a aparência de legalidade e com ajuda de algoritmos, o voto tornou-se matéria maleável: redesenhada até obedecer. E assim, entre 2021 e 2024, os republicanos garantiram cerca de dez cadeiras extras no Congresso apenas com lápis, linhas e silêncio judicial.
No centro desse tabuleiro está a Suprema Corte. Em 2026, ela deverá decidir o caso Louisiana v. Callais, que questiona a constitucionalidade da Seção 2 do Voting Rights Act: o último pilar da legislação que protege o voto das minorias raciais nos EUA. A Seção 2 obriga os estados a desenharem distritos eleitorais que permitam às comunidades negras e latinas elegerem candidatos de sua escolha. É uma resposta histórica às práticas de exclusão racial herdadas do século XX. Mas, sob o argumento de que "o Estado deve ser cego para a cor/raça", a teoria da "neutralidade racial", a maioria conservadora da Corte (liderada por John Roberts e Brett Kavanaugh) parece disposta a reinterpretar essa cláusula. Se a tese prosperar, estados do Sul e do Meio-Oeste poderão redesenhar seus mapas sem considerar critérios de representatividade racial.
Essa mudança seria, na prática, o golpe final em meio século de avanços civis. Desde Shelby County v. Holder (2013), que extinguiu a exigência de pré-aprovação federal de alterações eleitorais, cada decisão subsequente da Corte tem erodido o alcance do Voting Rights Act. Agora, discute-se se o próprio princípio da reparação racial é constitucional... uma ironia trágica em um país ainda marcado pela desigualdade sistêmica.
A decisão de 2026 não será apenas jurídica: será aritmética. Think tanks como o Brennan Center e o Cook Political Report projetam que o esvaziamento da Seção 2 pode custar de 12 a 19 cadeiras democratas na Câmara dos Representantes. Com uma margem atual de apenas nove assentos separando os partidos, essa alteração significaria uma maioria republicana consolidada até 2028, obtida não por aumento de votos, mas por engenharia cartográfica. O voto negro e latino seria diluído em distritos mistos, enquanto os republicanos manteriam super-representação... algo como 55% das cadeiras com 48% dos votos nacionais. Esse desequilíbrio, como alerta Jill Lepore, inaugura a era das democracias de minoria: sistemas onde quem perde numericamente continua governando institucionalmente. É o triunfo da geografia sobre a demografia.
Sob a justificativa do "tratamento igualitário", esconde-se uma operação ideológica profunda. A doutrina da "neutralidade racial", abraçada por parte da Corte e dos think tanks conservadores, pretende apagar o contexto histórico do racismo estrutural, apresentando políticas de reparação como formas de "discriminação reversa". Como explica Kimberlé Crenshaw, trata-se de uma reversão simbólica dos direitos civis: aquilo que nasceu para corrigir desigualdade passa a ser retratado como privilégio. É a transformação do antirracismo em racismo, pela via jurídica.
Steven Levitsky alerta sobre o processo de erosão democrática que ocorre dentro da legalidade aparente. A Constituição não é violada; é reinterpretada. O resultado é um regime que mantém formas democráticas, mas esvazia seu conteúdo material....uma autocracia constitucional de aparência liberal.
Se a Corte limitar a Seção 2, o impacto ultrapassará a disputa partidária. Estados conservadores ganharão carta branca para definir o que "constitui" discriminação racial. A proteção federal ao voto (conquista de 1965, selada após a marcha de Selma) será substituída por um mosaico de critérios locais, vulneráveis à ideologia de quem governa.
Ângela Davis chama esse fenômeno de "racismo administrado": o preconceito deixa de ser declarado e passa a ser gerido por tecnicalidades constitucionais. O destino político americano será decidido não apenas nas urnas, mas no modo como o país define quem tem o direito de chegar até elas. O gerrymandering é o sintoma visível de uma patologia mais profunda: a recusa em aceitar que igualdade substantiva exige tratamento diferenciado.
A Suprema Corte pode reinterpretar a Constituição, mas não pode reescrever a história. O voto foi conquistado à custa de sangue e luta e continua sendo o primeiro campo de batalha quando a democracia começa a ruir. Em 2026, o mapa eleitoral dos Estados Unidos poderá se tornar um espelho de sua crise mais íntima: a de decidir se continuará sendo uma democracia de direitos ou apenas um território de maiorias permanentes.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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