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Wania Sant´anna
Dulce Pereira
olhares negros
11/3/2022 | Atualizado às 15:47
Familiares e vizinhos da Gamboa de Baixo (Salvador) protestam contra o assassinato de Alexandre Santos, Clebeson Guimarães e Patrick Sapucaia. Foto: Marcos Musse[/caption]
A estação das barcas de Niterói é um local de intensa circulação de pessoas, algo como 20 mil passageiros por dia. Na manhã de 12 de fevereiro, esse seria o último lugar frequentado por Hiago Macedo de Oliveira Bastos, quando um policial militar de folga, o sargento Carlos Arnaud Baldez Silva Jr., atirou no peito no peito dele - e um policial sabe muito bem o que um disparo de arma de fogo pode causar no corpo humano ao atirar nessa região.
Segundo relatos de familiares, naquela semana, Hiago tinha uma missão: realizar a festa de aniversário da filha que completaria 2 anos alguns dias depois, esse era o seu objetivo naquela manhã. Tendo esse objetivo nada mais racional que escolher como ponto de venda de balas, a sua mercadoria, um lugar como a estação das barcas e seus mais de 20 mil prováveis passageiros. O que Hiago não podia supor é que sua racionalidade de vendedor ambulante seria confrontada com a irracionalidade e selvageria de seu assassino.
Moïse, Durval e Hiago eram trabalhadores, tinham família e amigos e foram assassinados de tal forma que, na atualidade, a lei jamais irá responder com justiça. A justiça brasileira não tem, ainda, leis que enfrentem situações como essas imputando-as o agravante necessário: o racismo. A situação de trabalho, além da cor, une esses três homens negros. O desespero e a indignação também unem as suas famílias, porque é importante que se diga: eles tinham pessoas queridas que agora convivem com esse estado máximo de violência, o homicídio. Os assassinatos e a brutalidade não calaram seus familiares e essa indignação faz uma diferença enorme nesse contexto - as pessoas sabem, cada vez mais claramente, que essas "coisas" têm as pessoas negras como alvos preferenciais. Os assassinatos de Moïse, Durval e Hiago deixaram, sem qualquer sombra de dúvida, três famílias negras, mais uma vez, à mercê do Estado na expectativa, e jamais na esperança, de que haja a condenação exemplar dos algozes.
Os números relacionados aos homicídios de pessoas negras no Brasil são inadmissíveis. Segundo o Atlas da Violência 2021, coordenado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada e Instituto Jones dos Santos Neves, em 2019, os negros (homens e mulheres) representaram 77% das vítimas de assassinato no país. Em números absolutos esse percentual representa 33.929 pessoas negras assassinadas em apenas um ano. Quando olhamos para a série histórica, também publicada no Atlas da Violência 2021, o assunto é ainda mais estarrecedor. Entre 2009 e 2019, 439.740 pessoas negras foram assassinadas no país - quase meio milhão de pessoas!
Segundo informe divulgado, em 2021, pela Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, a Guerra da Síria (2011-2021) deixou 350.209 mortos naquele país - ou seja, em uma década o Brasil registrou mais pessoas negras assassinadas que na guerra fraticida da Síria. Bachelet mencionou que os números da Guerra da Síria podem estar subestimados, e isso é mesmo possível, mas comparando as mortes daqui e de lá é uma vergonha que, por aqui, ainda tenhamos um excedente de quase 100 mil pessoas negras executadas!
O Atlas da Violência 2021 também apresenta números relacionados ao assassinato de pessoas não negras. Entre 2009 e 2019, 155.374 pessoas não negras foram assassinadas no país. É um escândalo? Sim, é um escândalo, mas escândalo mesmo é a magnitude quando comparamos os destinos de negros e brancos no Brasil. E é por isso que, observando apenas as vítimas negras de 2019 (33.929 pessoas) os organizadores do Atlas apresentem uma outra macabra conclusão: no Brasil a chance de uma pessoa negra ser assassinada é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.
Essas "chances" são rigorosamente assustadoras e perversas porque, ao fim e ao cabo, elas dizem respeito a uma desumanização e banalização das vidas negras no Brasil, fundamentadas em uma ideologia racista e de inferiorização do ser humano negro - homem ou mulher. E são essas percepções e prática ideológica combinadas que, ao fim e ao cabo, ceifaram as vidas de Moïse, Durval e Hiago. São essas "chances" perturbadoras que ceifaram, no dia 1º de março, as vidas de Alexandre Santos, Clebeson Guimarães e Patrick Sapucaia, todos jovens e negros, na mais recente incursão violenta da polícia militar da Bahia.
A Gamboa de Baixo, em Salvador, comunidade e local de residência dos jovens assassinados, se levantou em protesto no dia 7 de março. As mães, familiares, vizinhos, crianças e ativistas fizeram, diante das circunstâncias, a coisa certa: denunciaram a truculência policial e a tentativa insidiosa de acusar as vítimas de estarem armados e de terem reagido à incursão. No Rio de Janeiro, também houve protesto organizados pelo movimento negro e familiares das vítimas nos casos de Moïse, Durval e Hiago, mas, assustadoramente, sabemos que até o final do ano muitos outros assassinatos e protestos pelos mesmos motivos covardes nos aguardam. Sobre isso, realmente, Muniz Sobre tem toda a razão, "abolidas as regras, liberadas as armas, semeou-se a violência como clima moral.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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