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Justiça e gênero
7/7/2025 13:30
Em março de 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como legítimo formulador de políticas judiciárias, editou a Resolução nº 492/2023, instituindo diretrizes para que os julgamentos no Poder Judiciário considerem a perspectiva de gênero e interseccionalidade, como forma de combater a reprodução de preconceitos, estereótipos e desigualdades históricas. Trata-se de um instrumento técnico, normativo e de direitos humanos, alinhado a compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Brasil.
No entanto, tramita atualmente na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo nº 89/2023, de autoria da Deputada Federal Chris Tonietto (PL-RJ), que pretende sustar os efeitos da Resolução nº 492 do CNJ, sob o argumento de que o Conselho teria extrapolado sua competência constitucional ao instituir a obrigatoriedade de capacitação de magistrados para a adoção da perspectiva de gênero, sem amparo em lei formal. Segundo a justificativa do projeto, o CNJ teria promovido uma usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal e violado os limites do poder regulamentar ao criar, por meio de resolução administrativa, obrigações que vinculam a magistratura e o Poder Público.
Sem titubear, entendemos que a proposta representa um claro retrocesso institucional, disfarçado de defesa da neutralidade judicial, pois ameaça a proteção de grupos historicamente vulnerabilizados pelo sistema de justiça.
Ademais, a justificativa incorre em grave equívoco, pois o CNJ é o órgão responsável por promover a governança democrática do Poder Judiciário, atuando como instância de planejamento, fiscalização e normatização administrativa, com base no art. 103-B, 4º da CF/88.
O STF, nos julgamentos da ADI 3.367 e ADC 12, já reconheceu a legitimidade do CNJ para editar normas vinculantes, inclusive com base em fundamentos implícitos de sua competência. Portanto, não se trata de ativismo normativo, mas sim do exercício legítimo de uma função atribuída pela própria Constituição Federal de 1988.
Nesses termos, a Resolução nº 492/2023, longe de interferir na função jurisdicional dos magistrados, orienta boas práticas de gestão judiciária, com foco na capacitação, prevenção de discriminações e fortalecimento da confiança social no Judiciário. Em assim sendo, a tentativa de sua sustação acaba por atacar políticas de promoção da igualdade de gênero.
Além disso, a tentativa de deslegitimar a Resolução do CNJ com base na suposta adoção de uma teoria de gênero como ideologia, faz uma interpretação reducionista e desinformada sobre o papel do Direito na promoção da igualdade. Em primeiro lugar, o termo gênero não é um modismo acadêmico nem um produto ideológico, mas sim uma categoria analítica reconhecida em documentos internacionais ratificados pelo Brasil, como a CEDAW, a Convenção de Belém do Pará, a Agenda 2030 da ONU (ODS 5) e diversas recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Resolução nº 492 não nega a existência biológica dos sexos, mas reconhece, como já consolidado por organismos internacionais, que as desigualdades materiais vivenciadas por mulheres e por pessoas LGBTQIAPN+ decorrem de construções sociais e culturais que atravessam o campo jurídico e institucional.
Ademais, a Constituição Federal, ao tratar do princípio da igualdade substancial (art. 5º, caput) e dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, IV) impõe o combate a qualquer forma de discriminação.
Portanto, ignorar essa dimensão, equivale a esvaziar a força normativa da Constituição e negar a própria função contramajoritária do Judiciário na defesa de grupos vulnerabilizados. Em assim sendo, não se trata de ideologia, mas de técnica jurídica comprometida com os direitos humanos e com a justiça social. Ao final e ao cabo, é um compromisso com a Constituição e com os pactos internacionais.
Um ponto importante que precisa ser reforçado é que julgar com perspectiva de gênero não é dar ganho de causa a mulheres, mas sim identificar se estereótipos e discriminações estruturais estão operando para minar a isonomia material no processo judicial*.
Trata-se de uma metodologia jurídica consolidada, recomendada pela CEDAW (Recomendação Geral nº 33), adotada em vários países da América Latina e fundamentada no direito humano à igualdade, como prevê a Declaração Universal dos Direitos Humanos**.
Logo, a metodologia proposta pelo CNJ não reduz o mérito à identidade das partes, mas impõe que as decisões judiciais não sejam contaminadas por preconceitos inconscientes ou padrões normativos que favoreçam o sujeito universal (quase sempre branco, heterossexual, cisgênero, urbano e economicamente estável). Afinal, a neutralidade, quando ignora a desigualdade, deixa de ser técnica e passa a ser opressiva.
Ademais, a Agenda 2030 da ONU, da qual o Brasil é signatário, estabelece como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (ODS 5) a meta de alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas, com compromissos claros para eliminar a violência, a discriminação e promover a participação política, econômica e institucional das mulheres e de grupos em situação de vulnerabilidade.
Nesse sentido, as Metas 5.1 e 5.2 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, das quais o Brasil é signatário, impõem aos Estados o dever de eliminar todas as formas de discriminação e violência de gênero, considerando suas intersecções com raça, etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, cultura, religião e nacionalidade. Tais metas não se limitam a diretrizes abstratas, mas demandam a construção de estruturas que promovam, reforcem e monitorem a igualdade substantiva. A Resolução nº 492/2023 do CNJ, ao estabelecer diretrizes para a adoção da perspectiva de gênero nos julgamentos e prever capacitação da magistratura, se alinha diretamente a esse compromisso internacional, promovendo uma atuação judicial mais consciente, protetiva e isonômica, sobretudo diante das desigualdades estruturais que afetam grupos vulnerabilizados.
Dessa forma, o PDL 89/2023, ao tentar sustar a Resolução, coloca o Brasil na contramão dos compromissos que assumiu perante a comunidade internacional e envia uma mensagem equivocada ao sistema de justiça, no sentido de que as desigualdades podem continuar sendo reproduzidas sob a aparência da imparcialidade.
No sistema de justiça, a presença de viés de gênero e raça afeta desde o acesso à prova até a interpretação das normas. É nesse cenário que se insere a importância da Resolução nº 492, com objetivo de trazer uma lente crítica que permita ao Judiciário atuar como agente de transformação social, e não como espelho de desigualdades.
Por isso, entendemos que rejeitar a referida Resolução por meio do PDL 89/2023 é, no fundo, negar a existência da desigualdade, silenciar as vozes que denunciam o machismo institucional e promover uma falsa ideia de justiça cega, que, na prática, perpetua os privilégios de poucos.
A Resolução nº 492/2023 é uma política pública judiciária legítima, necessária e urgente. Sustá-la, além de fragilizar os compromissos do Brasil com a equidade e os direitos humanos, atenta contra o próprio papel do Judiciário como promotor da justiça social, nos termos impostos pela Constituição Federal de 1988.
O PDL 89/2023, ao contrário do que aparenta, não promove a neutralidade, promove a continuidade da desigualdade e da legitimação da exclusão. E isso, num país profundamente marcado por assimetrias de gênero, raça e classe, não pode ser naturalizado nem aceito como técnica jurídica.
*MATOS, Larissa. O julgamento com perspectiva de gênero na Justiça do Trabalho. Revista LTR, São Paulo, ano 86, p. 678683, jun. 2022.
**MATOS, Larissa. O julgamento com perspectiva de gênero na Justiça do Trabalho. Revista LTR, São Paulo, ano 86, p. 678683, jun. 2022.
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