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Violência racial
2/8/2025 14:00
Li atentamente a 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em 24 de julho de 2025, e não me surpreendi. A dor, para quem é negro neste país, é um dado repetido, é uma tragédia anunciada, é um destino construído a partir de escolhas sociais, políticas e institucionais que insistem em negar a humanidade da população negra. Em 2024, o Brasil registrou 44.127 mortes violentas intencionais. Dessas, 79% foram de pessoas negras. Quase metade dessas vítimas (48,5%) tinham entre 12 e 29 anos. Isso é mais do que estatística; é genocídio autorizado.
Quando se observa os dados de letalidade policial, o quadro é ainda mais alarmante: 6.243 pessoas foram mortas em decorrência de ações policiais em 2024, sendo 82% negras. A taxa de letalidade policial entre negros é de 4,5 por 100 mil habitantes. Entre os brancos, essa taxa cai para 1,0. É como se a própria farda, sustentada por um Estado que deveria proteger, tivesse sido programada para identificar e eliminar corpos negros. A quem serve essa violência seletiva? Qual é o projeto de segurança pública que se repete a cada ano, com as mesmas vítimas, os mesmos bairros, os mesmos silêncios?
Mesmo com a queda de 5,4% nas mortes violentas em comparação a 2023 - o menor número desde 2012 -, a seletividade racial se mantém intacta. As regiões com maior presença da população negra, como o Nordeste e o Norte, continuam sendo as mais afetadas. Isso não é coincidência. Isso é racismo estrutural. A geografia da morte é também a geografia da exclusão histórica. O Brasil continua a escolher quem vive e quem morre. E escolhe pela cor.
A violência sexual também tem cor no Brasil. Em 2024, 55,6% das vítimas de estupro eram negras. Dos 87.545 casos registrados, 76,8% foram estupros de vulnerável, com vítimas majoritariamente entre 10 e 13 anos. Em sua maioria, meninas negras, agredidas dentro de suas próprias casas. Isso diz muito sobre o quanto a estrutura patriarcal e racista do país se entrelaça para violar corpos desde a infância, sem oferecer qualquer tipo de proteção real.
E se engana quem pensa que essa violência é apenas física. O racismo estrutural se manifesta também nos dados econômicos e sociais. Segundo o IBGE, em 2021, negros representavam 54,9% da força de trabalho, mas recebiam, em média, R$ 1.907 por mês - quase metade da média salarial dos brancos, que era de R$ 3.310. Ainda segundo o IBGE, 64,2% dos desempregados eram negros. E mais: 84% dos trabalhadores resgatados de trabalho análogo à escravidão eram pretos ou pardos. O Brasil insiste em manter os negros na base da pirâmide, mesmo após séculos do fim legal da escravidão.
Esses dados dialogam diretamente com os apresentados pelo Anuário. Eles não surgem isoladamente, não são um acaso estatístico. Pelo contrário: são resultados previsíveis de uma sociedade construída sobre a exclusão e a marginalização de pessoas negras. É o reflexo de políticas públicas ineficazes, de ausência de investimentos em educação, saúde e habitação para comunidades negras, e de um sistema de justiça que criminaliza a pobreza e o fenótipo.
O mais doloroso é perceber que, mesmo diante de números tão brutais, não há comoção nacional. A sociedade brasileira naturalizou a morte da juventude negra. Cada corpo estendido no chão é apenas mais um número a ser contabilizado em relatórios que, ano após ano, repetem as mesmas conclusões. A pergunta que me faço, como homem negro e cidadão brasileiro, é: até quando?
Não se trata apenas de violência policial, mas de uma violência sistêmica, silenciosa e persistente, que se estende aos hospitais que não acolhem, às escolas que não incluem, ao mercado de trabalho que não emprega e ao Estado que não protege. O Anuário nos esfrega na cara que estamos falhando - ou pior, que estamos permitindo conscientemente que esse ciclo de morte continue.
Por isso, não basta lamentar. É preciso agir. É preciso criar políticas públicas que levem em conta o recorte racial de forma séria. É preciso investir em educação antirracista, em controle externo das forças policiais, em ações afirmativas reais, em acesso à justiça, em habitação digna e em saúde pública universal e efetiva. A vida negra precisa deixar de ser apenas um dado estatístico e passar a ser prioridade política.
A cada página do Anuário, senti como se estivesse lendo um livro de luto coletivo. Mas também senti a urgência da luta. Porque enquanto a morte escolhe pela cor, nós escolhemos resistir - por memória, por justiça e, principalmente, por vida.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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