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João Batista Oliveira
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Educação
3/6/2025 9:52
Enquanto o Brasil se mobiliza de forma ao mesmo tempo rotineira e espetacular para enfrentar a gripe aviária com uma combinação de protocolos sanitários rigorosos, monitoramento constante, testagem eficiente e respostas rápidas, uma outra crise - muito mais grave, antiga e devastadora - segue sendo tratada com indiferença burocrática, desinformação técnica e negligência institucional: a crise da alfabetização.
A comparação não é acidental nem forçada. Hoje, o país dedica mais inteligência, rigor técnico e senso de urgência à proteção sanitária de suas aves do que à garantia de que suas crianças aprendam a ler logo que entram na escola.
A reação exemplar do setor agropecuário à ameaça da gripe aviária ilustra bem o que acontece quando um problema é levado a sério. Imediatamente, entram em ação protocolos claros, rastreabilidade rigorosa, monitoramento sistemático e intervenção rápida. Quando isso ocorre, as consequências são imediatas: embargos comerciais, quebras contratuais, perdas bilionárias, destruição de mercados. Não se brinca com sanidade avícola.
E o que dizer da sanidade educacional? No último dia 20 de maio, a Câmara dos Deputados realizou um seminário promovido pela deputada Adriana Ventura, para discutir exatamente isso: por que o Brasil ainda não consegue alfabetizar todas as crianças ao final do primeiro ano? A resposta, vinda diretamente de uma das maiores autoridades responsáveis pelo tema - o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) - foi tão escandalosa quanto reveladora: seguimos o que preconiza a BNCC a Base Nacional Comum Curricular. Só avaliamos os alunos ao final do 2º ano.
Não, isso não é uma hipérbole, nem exercício de ironia. É o retrato de uma cruel realidade. O órgão que deveria zelar pela qualidade da educação admite, sem qualquer constrangimento, que segue um protocolo que sabe ou tem obrigação de saber que está errado - e, mesmo assim, persiste.
O resultado prático dessa posição é trágico e conhecido: o Brasil não adota um protocolo público robusto, validado e cientificamente embasado nem para alfabetizar nem para diagnosticar com precisão se uma criança está ou não alfabetizada. Não há padrões claros, não há critérios objetivos ou ferramentas confiáveis para identificar, com rigor, se uma criança domina a habilidade de decodificar palavras - que é, de maneira incontornável, a base da leitura e da alfabetização. Uma ressalva: os protocolos são conhecidos internacionalmente, mas adotados apenas por poucos municípios brasileiros. E o MEC não quer nem saber disso.
Por consequência, também não há qualquer protocolo efetivo de intervenção. Sem diagnóstico, não há correção de rota. Sem correção de rota, as defasagens se acumulam, cristalizam-se e transformam-se em fracasso escolar, evasão, desemprego e exclusão social.
Essa omissão não é fruto de ignorância. É construída sobre um erro conceitual travestido de sofisticação pedagógica, que aparece nas formulações da BNCC e se replica nas avaliações oficiais: a ideia de que alfabetizar não é apenas ensinar a decodificar, mas também, simultaneamente, compreender textos, produzir textos e participar de práticas discursivas. Parece sensato. Mas esse argumento de "não apenas.... mas também" não passa de uma falácia lógica elementar, que qualquer profissional minimamente familiarizado com a ciência cognitiva da leitura sabe desmontar. E não foi por falta de alerta que a BNCC sacramentou essas barbaridades.
Aprender a ler é, antes de tudo, decodificar de forma automática, rápida e precisa. Sem essa base consolidada, não é possível compreender o que se lê. Não é uma questão de opinião ou de concepção pedagógica. É uma questão de neurociência, psicologia cognitiva, linguística e evidência empírica acumulada ao longo de mais de meio século de pesquisa internacional. Sem decodificação fluente, não há leitura. E sem leitura, não há acesso ao conhecimento, nem progressão escolar, nem cidadania plena.
No Brasil, seguimos fingindo que não sabemos disso. Fingindo que é possível alfabetizar sem ensinar sistematicamente a decodificar. Fingindo que avaliações confusas, que misturam habilidades distintas e ignoram a sequência natural do desenvolvimento da leitura, são suficientes. Fingindo que a culpa é da família, da cultura, das condições sociais, da falta de engajamento - de qualquer coisa, menos dos erros conceituais que estruturam nossas políticas públicas. Fingindo que basta ter "representatividade" nos conselhos para que surjam decisões fundamentadas. Os protocolos de alfabetização do teste do INEP foram validados por 250 professores de todo o país. Mas será que alguém se preocupou em saber se algum desses professores já alfabetizou um aluno sequer? Ou se está a par da Ciência Cognitiva da Leitura? Tudo é carnaval e, como em certos rituais, se sacrificam as crianças em nome de crenças exóticas.
Convém observar que há setores que atuam ativamente na sustentação do problema. É o caso de parte expressiva do setor industrial brasileiro - especialmente o de fortes empresários da Avenida Paulista - que não hesita em apoiar e financiar a perpetuação de iniciativas e modelos educacionais igualmente improdutivos e sem mostrar qualquer evidência dos resultados de sua pirotecnia.
Não é por acaso que esse setor - que convive pacificamente com cadeias produtivas obsoletas, baixa competitividade internacional, recorrentes pedidos de socorro estatal e se beneficia de mais de 120 tratamentos tributários especiais - financia e promove com entusiasmo a BNCC, os conselhos assembleistas e toda sorte de reformas regressivas, que vestem de discurso progressista aquilo que, na prática, impede a educação brasileira de avançar. E acha natural transferir esse mesmo modelo para a educação: muita retórica, muita governança de fachada, muito lobby, muito consenso de gabinete - e pouquíssima eficácia. A ironia é evidente.
O paralelo com a crise aviária não é apenas ilustrativo, mas estrutural. Quando uma ave apresenta risco sanitário, o Estado age. E, se necessário, sacrifica o lote para proteger o sistema, a produtividade, os mercados e a segurança alimentar do país. Quando uma criança chega ao final do segundo ano sem saber ler, o INEP simplesmente responde que "segue a BNCC" - e que, se ela estiver errada, paciência.
Cabe uma pergunta incômoda ao competente setor agropecuário brasileiro: se não aceita risco sanitário em sua cadeia produtiva, por que admite pacificamente essa tragédia educacional que se abate também sobre suas próprias famílias e comunidades? E o que dizer dos prefeitos de municípios onde impera a produção agropecuária? Por que a bancada do agro, que tem força e organização, não exige das autoridades da educação - do MEC, do INEP e dos governos estaduais e municipais - uma ação igualmente robusta, técnica e imediata?
Embora a analogia com a gripe aviária seja oportuna, é fundamental ressaltar que todos os setores produtivos, e não apenas o agro, precisam se unir em torno da causa da alfabetização - afinal, todos são, direta ou indiretamente, responsáveis por garantir uma educação de qualidade. E mais do que afetar a formação da futura força de trabalho, o analfabetismo compromete a produtividade, a autonomia e a própria sustentação da cidadania no país.
A crise da alfabetização não é uma tragédia inevitável, mistério técnico ou problema cultural insolúvel. É, pura e simplesmente, a opção por rejeitar protocolos baseados em evidências. E não intervir com precisão, não corrigindo o que já sabemos estar errado.
Se tratarmos nossas crianças como tratamos nossas aves, o Brasil resolve, em menos de dois anos, a crise da alfabetização. A escolha está diante de nós. E, como o próprio agro sabe melhor do que ninguém, quem escolhe não agir, escolhe o prejuízo.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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