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Gisele Agnelli
Gisele Agnelli
Política internacional
18/7/2025 12:00
Em meu último artigo, trouxe a possibilidade de Trump ancorar o tarifaço contra o Brasil usando a IEEPA, International Emergency Economic Powers Act. Não acredito que Trump conseguiria ir muito longe justificando as sanções como "defesa emergencial" contra um país que ameaça a "segurança nacional estadunidense" de alguma forma. O uso do IEEPA - já utilizado contra China e México sob a justificativa da falta de controle sobre a entrada de fentanil nos EUA - além de não se justificar no caso brasileiro, será analisado no dia 31 de julho pelo Tribunal de Apelações de Washington, com grandes chances de ser considerado ilegal ou anulado judicialmente.
Agora o caldo entornou: num gesto que combina oportunismo eleitoral, vingança geopolítica e desvio instrumental do direito comercial internacional, Donald Trump anunciou que está instruindo o Representante de Comércio dos EUA, Jamieson Greer, a iniciar uma investigação formal da Seção 301 contra o Brasil. Baseado no resultado desta investigação, Trump pode, sem anuência do legislativo, e com respaldo legal, instituir as tarifas (sanções) contra o Brasil. O documento que fundamenta a investigação lista seis áreas em que o Brasil estaria supostamente prejudicando empresas ou normas internacionais. Uma análise criteriosa, no entanto, revela que todas essas alegações são vagas, infundadas ou flagrantemente hipócritas, servindo como pretexto para uma ofensiva política disfarçada de disputa comercial.
"O Brasil pode estar prejudicando a competitividade de empresas americanas nesses setores, ao adotar medidas de retaliação contra companhias que se recusam a censurar discursos políticos".
Essa cláusula é uma defesa disfarçada das big techs e da extrema direita digital. O que o documento chama de "retaliação" diz respeito a medidas brasileiras para limitar a desinformação, o discurso de ódio e a manipulação algorítmica promovida por plataformas como X (Twitter), Rumble e outras ligadas ao ecossistema digital da extrema direita trumpista-bolsonarista.
A narrativa de que empresas são punidas por "não censurar discursos políticos" inverte a realidade: são as plataformas que, protegidas por imunidades nos EUA, lucram com conteúdos que violam leis brasileiras. Ao defender essas empresas, Trump não protege a concorrência: protege o direito à impunidade digital.
"O Brasil concede tarifas reduzidas e vantajosas a determinados parceiros comerciais estratégicos, o que colocaria os EUA em desvantagem"
Essa acusação é uma forma velada de protesto contra a autonomia comercial do Brasil. O país, como qualquer outro, tem o direito de estabelecer acordos bilaterais ou multilaterais com cláusulas preferenciais, especialmente com países do Sul Global, dentro das regras da OMC.
Os Estados Unidos mantêm acordos comerciais seletivos com países aliados, e sob a presidência de Trump essa seletividade assumiu forma abertamente coercitiva. O exemplo mais notório é o USMCA, tratado que substituiu o NAFTA e incluiu cláusulas que proíbem México e Canadá de firmar acordos comerciais com a China sob pena de exclusão automática do pacto. Ou seja: Trump instrumentalizou tratados multilaterais como ferramentas de contenção geopolítica, não como veículos de livre comércio. Criticar o Brasil por exercer sua soberania tarifária, ao mesmo tempo em que se impõem restrições extraterritoriais a aliados, é praticar "dois pesos e duas medidas".
"A falha do Brasil em aplicar medidas de combate à corrupção levanta preocupações."
Talvez a mais grotesca hipocrisia do documento. Trump foi o presidente que, em 2020, desfigurou a Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA), permitindo que empresas americanas ocultassem subornos pagos no exterior. Em nome da "desburocratização", legalizou na prática a corrupção transnacional corporativa.
Já o Brasil, com todos os seus desafios, tem um sistema judicial que levou presidentes, governadores e grandes empresários à Justiça. As instituições brasileiras, incluindo o STF, estão hoje justamente sendo atacadas por cumprir seu dever constitucional contra a impunidade.
"O Brasil aparenta falhas na garantia de proteção eficaz dos direitos de propriedade intelectual".
Essa alegação é vaga e ideológica. O Brasil é signatário dos principais acordos de PI da OMC (TRIPS), tem legislação compatível com os padrões internacionais e aplica sanções em casos de violação. O que está em jogo aqui é a pressão de gigantes farmacêuticas e de entretenimento dos EUA, que buscam impor regras ainda mais rígidas para maximizar lucros e restringir o acesso de países em desenvolvimento à tecnologia, cultura e medicamentos.
O Brasil defende um modelo mais equilibrado de inovação e acesso público, que respeita a PI sem submeter-se à lógica monopolista norte-americana. Criminalizar esse modelo é criminalizar o direito ao desenvolvimento autônomo.
"O Brasil recuou de seu compromisso de oferecer tratamento praticamente livre de tarifas ao etanol dos EUA".
O Brasil, como qualquer país em desenvolvimento, recorre a medidas tarifárias seletivas para proteger setores estratégicos, como o etanol e a indústria de base, buscando preservar empregos, fomentar cadeias produtivas internas e defender sua autonomia energética. Trata-se de um protecionismo defensivo, típico de economias que não detêm hegemonia tecnológica, financeira ou militar. No caso específico do etanol, há ainda uma dimensão ambiental e tecnológica ignorada pelos EUA: o etanol brasileiro, derivado da cana-de-açúcar, é mais limpo, mais eficiente energeticamente e menos poluente que o etanol de milho norte-americano, cuja produção exige maior consumo de água, terra e subsídios públicos.
Já os Estados Unidos, sob a presidência de Trump, adotaram um protecionismo de natureza ofensiva e extraterritorial (como no caso do USMCA, supracitado, que proíbe México e Canadá de firmarem acordos comerciais com a China sob pena de expulsão do pacto). Esse tipo de medida revela que, longe de promover o livre mercado, os EUA usam seus tratados como instrumentos de contenção geopolítica, buscando isolar rivais estratégicos e preservar seu domínio estrutural sobre as cadeias globais de valor e de energia. Portanto, criticar o Brasil por exercer sua soberania tarifária, ao mesmo tempo em que se impõem sanções, cláusulas excludentes e tarifas unilaterais contra aliados e adversários, é uma duplicidade moral cínica. O protecionismo brasileiro visa sobrevivência econômica, inclusão produtiva e transição energética. O protecionismo americano visa hegemonia sistêmica, disciplinamento geopolítico e preservação de privilégios estruturais.
"O Brasil aparentemente não está fazendo cumprir de maneira eficaz suas leis ambientais."
A ironia aqui é quase grotesca. Trump foi o presidente que: retirou os EUA do Acordo de Paris; desmontou regulações ambientais federais da EPA; autorizou mineração e petróleo em reservas naturais e terras indígenas; eliminou proteções contra desmatamento em zonas florestais norte-americanas, entre outros.
Além disso, apoiou Jair Bolsonaro mesmo diante do colapso ambiental na Amazônia, e nunca fez qualquer menção crítica à destruição promovida pelo agronegócio predatório no Brasil. Sob Lula, o Brasil retomou o combate ao desmatamento, com queda documentada nos índices da Amazônia e maior fiscalização do IBAMA. Portanto, Trump não defende o meio ambiente, instrumentaliza o discurso ambiental como arma protecionista.
Por fim, paira sobre toda essa retórica a falácia de que os EUA estão sendo "explorados" pelo Brasil por meio de um suposto déficit comercial injusto. Segundo dados do U.S. Census Bureau e do Ministério da Economia os EUA exportam ao Brasil produtos de alto valor agregado (aviões, defensivos agrícolas, tecnologia, serviços financeiros e militares), enquanto importam commodities com baixo valor agregado (minério, soja, carne, celulose). Em muitos anos, os EUA têm superávit nos serviços e nos royalties de propriedade intelectual. O déficit anual com o Brasil é muito menor que com países como China, Alemanha, México, Japão ou Vietnã. Ou seja, a narrativa de que os EUA "perdem" com o Brasil é uma construção populista para justificar tarifas e chantagens. Não há fundamento econômico para a retaliação, apenas cálculo político.
A "investigação" da Seção 301 não é um processo técnico, mas um instrumento de chantagem político-comercial. Ao listar acusações frágeis, contraditórias e muitas vezes hipócritas, Trump instrumentaliza o comércio para proteger aliados autoritários como Bolsonaro; enfraquece instituições multilaterais ao impor sanções unilaterais e extraterritoriais e ataca a soberania de um país em pleno exercício do Estado de Direito.
A democracia brasileira não pode se dobrar à lógica neoimperialista de quem transforma mitos comerciais em armas de guerra política. A resposta precisa ser firme, multilateral e solidária, em defesa não só do Brasil, mas do direito de qualquer país de julgar seus próprios criminosos, corruptos e golpistas.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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