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Saúde
26/5/2025 | Atualizado 27/5/2025 às 7:58
Alguns temas exigem do Congresso o resgate de sua função mais nobre: escutar a sociedade, reagir diante de violações concretas e assumir seu papel como instância de contenção institucional. Não é momento de ser coadjuvante em disputas de liderança ou operador de pautas definidas pelo Executivo. O país precisa de um Legislativo que assuma protagonismo democrático - não apenas formal.
Nas últimas semanas, a Câmara dos Deputados discute a instalação de novas CPIs, mas enfrenta limite regimental: apenas cinco podem funcionar simultaneamente, e hoje nenhuma está em andamento. Entre os pedidos aguardando análise, destacam-se dois de alto interesse público e cuja discussão deve estar acima de disputas políticas - um sobre os planos de saúde e outro sobre crimes contra crianças nas redes sociais.
No caso da saúde suplementar, o clamor é antigo, pois desde o segundo semestre de 2024 parlamentares de diferentes partidos - da base e da oposição - vêm manifestando a necessidade de apuração formal. O requerimento da CPI dos Planos de Saúde, já com 310 assinaturas, transcende divisões ideológicas e é expressão de um consenso incômodo: há algo profundamente errado no funcionamento do sistema.
A CPI não é apenas legítima - é urgente. Trata-se de uma resposta institucional necessária diante de um modelo de saúde suplementar que passou a operar à margem do pacto constitucional. O que antes era tratado como falha pontual ou distorção contratual isolada transformou-se em engrenagem industrial de exclusão. Hoje, o setor acumula não apenas denúncias administrativas, mas uma sucessão sistemática de violações ao direito à saúde, à dignidade humana e ao próprio cumprimento de decisões judiciais emitidas de forma recorrente por tribunais de todo o país.
Silenciar diante desse quadro é negar à população o direito mais elementar: o de ser protegida quando todas as demais instâncias falham. E é isso que, lamentavelmente, já se verifica na prática: a saúde transformou-se em campo de exceção. E o Parlamento não pode se limitar à plateia.
O que se assiste na saúde suplementar é um projeto calculado de exclusão. Contratos são rompidos unilateralmente com pacientes em tratamento - muitos deles com câncer, doenças neurológicas degenerativas ou síndromes raras. Os critérios não são clínicos, mas sim contábeis. A equação é clara: usuários com maior complexidade assistencial são sistematicamente alijados do sistema. Em alguns casos, o rompimento do vínculo se dá no meio de um ciclo de quimioterapia ou após a primeira fase de um tratamento cirúrgico. De forma abrupta, sem alternativas viáveis e à margem da conduta médica.
Essa lógica é sustentada por um conjunto de estratégias empresariais que foram naturalizadas sob o rótulo de "gestão". Uma das mais enraizadas é a auditoria médica terceirizada - conduzida por empresas contratadas não para fiscalizar com rigor técnico, mas para bloquear procedimentos de forma sistemática e previsível. Há registros de pareceres genéricos, produzidos sem embasamento clínico adequado, com desfecho orientado à recusa. Muitas vezes, hospitais assumem o papel de filtro inicial, retendo ou distorcendo os pedidos antes mesmo que cheguem à operadora. O que deveria ser uma análise técnica se converte em barreira administrativa. O pedido não é formalmente negado - apenas desaparece no trajeto.
No campo da oncologia, o padrão se agrava de forma alarmante. Multiplicam-se os relatos de atrasos e negativas em terapias quimioterápicas, muitas vezes justificadas por argumentos que beiram o absurdo - como a idade do paciente ou a suposta inadequação de protocolos amplamente reconhecidos pela literatura médica internacional. Em diversas ações judiciais, o início do tratamento só ocorreu por força de liminar. E mesmo assim, em centenas de episódios, as determinações judiciais foram solenemente ignoradas.
Uma das maiores operadoras do país acumula mais de 100 casos de descumprimento de decisões judiciais apenas no Foro Central da capital paulista. Em mais de 80 processos distintos, o Judiciário determinou a liberação de medicamentos, exames ou terapias. Em vão. Em inúmeras situações, a operadora não apresentou qualquer manifestação processual. Na esmagadora maioria, não houve contestação técnica apenas omissão deliberada.
Em outras, nem sequer se registrou uma justificativa formal. A negativa se efetiva por ausência, não por argumentação. O crime de desobediência previsto para situações semelhantes (artigo 319 do Código Penal) tem se tornado letra morta. Os Conselhos Regionais de Medicina, que poderiam exercer papel decisivo na aplicação das próprias normas éticas da profissão, têm se mostrado omissos - ou, no mínimo, inertes - diante de condutas que afrontam diretamente o código de ética médica. A impressão é de paralisia institucional.
Na área das cirurgias, a imposição de "pacotes" fechados tem progressivamente substituído a prescrição médica. Trata-se de uma conduta já incorporada à rotina dos hospitais conveniados, onde próteses, órteses e materiais especiais são definidos não a partir da necessidade clínica, mas com base em acordos comerciais firmados entre hospitais e operadoras.
A autonomia do cirurgião, prevista no Código de Ética Médica e nas resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), como a de nº 2.318/2022, vem sendo sistematicamente atropelada por modelos orçamentários como o DRG (Diagnosis-Related Group), que estipula um teto financeiro para o procedimento, ignorando as variáveis clínicas e anatômicas do paciente.
O resultado é a medicalização da planilha: a decisão terapêutica, que deveria ser do profissional à beira do leito, é subjugada por metas de custo predefinidas. Médicos são impedidos de dialogar com as operadoras. Os pedidos cirúrgicos são "revistos" internamente por comitês administrativos hospitalares que, muitas vezes, não enviam a demanda à seguradora.
O que o médico indica como essencial se transforma em uma sugestão sujeita à triagem contábil. O plano não recusa: simplesmente deixa de receber o pedido. A ANS assiste calada a uma manobra que dribla suas próprias regras. Embora existam resoluções que definem prazos para autorizações, esses prazos viram ficção: hospitais bloqueiam os pedidos antes que cheguem às operadoras, travando o processo ainda na largada. O que há é um buraco regulatório - e a agência finge que não vê.
A gravidade da situação motivou, inclusive, uma notificação formal da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN) a diretores clínicos e técnicos de hospitais em fevereiro de 2024. No documento, a SBN denuncia que os pacotes cirúrgicos com valores pré-definidos - frequentemente distintos conforme o plano de saúde do paciente - resultam em violação direta à autonomia médica e em prejuízo à saúde do beneficiário. A carta reforça que tais práticas ferem o artigo 58 do Código de Ética Médica e são incompatíveis com os dispositivos da Resolução CFM nº 2.147/2016, que estabelece as responsabilidades dos diretores clínicos.
Além disso, a imposição de fabricantes de materiais previamente contratados, sem qualquer base técnica específica - desconsiderando as prerrogativas do médico quanto à escolha de órteses, próteses e OPMEs - compromete o resultado cirúrgico e desrespeita direitos civis e consumeristas.
Em clara afronta à Resolução ANS nº 424/2017, tem-se consolidado a prática em que hospitais assumem a triagem e a decisão sobre procedimentos, omitindo a operadora e desfigurando o vínculo contratual entre beneficiário e plano. O paciente é duplamente excluído: do direito à escolha terapêutica e da instância decisória que o contrato lhe assegura.
Essa distorção se torna ainda mais grave nas chamadas juntas médicas, que deveriam funcionar como um ambiente de discussão técnica, com composição definida em comum acordo entre o médico assistente e o da operadora. Em vez disso, as operadoras têm imposto nomes de forma unilateral, violando o disposto nos 2º e 3º do art. 6º da RN nº 424/2017.
O instrumento que deveria dirimir divergências legítimas é transformado em pareceres padronizados, muitas vezes emitidos por profissionais sem familiaridade com o caso ou com o procedimento discutido - usados apenas para legitimar recusas já decididas de antemão.
A ANS persiste na inércia: não intervém, não esclarece, não corrige. Mesmo diante de violações reiteradas às normas que ela própria editou, mantém-se distante - como se sua função fosse meramente ornamental. Consolida-se, assim, uma regulação de fachada, em que a forma disfarça a ausência de substância. Em paralelo, os Conselhos Regionais de Medicina assistem à desfiguração da autonomia médica com apatia crescente. Diante de médicos forçados a contrariar suas próprias prescrições, submetidos a interferência administrativa direta, o silêncio dos CRMs já não é omissão: é anuência tácita, incompatível com a responsabilidade institucional que se espera desses conselhos.
A retórica da "sustentabilidade" dos planos contrasta com a realidade financeira do setor. Em 2024, as operadoras de planos de saúde registraram lucro líquido de R$ 11,1 bilhões - um salto de duzentos e setenta e um por cento em relação ao ano anterior. Segundo dados divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em março de 2025, esse resultado superou o lucro somado dos três anos anteriores e correspondeu a aproximadamente 3,16% da receita total do setor, estimada em R$ 350 bilhões. Isso significa que, para cada R$ 100 arrecadados, os planos lucraram mais de R$ 3 líquidos (Fontes: ANS e Agência Brasil, 18/03/2025).
Ao mesmo tempo, a sinistralidade - que mede quanto da receita é, de fato, utilizada em despesas assistenciais - caiu para 82,2% no último trimestre de 2024, o menor índice para esse período desde 2018. A própria ANS atribuiu esse desempenho à reorganização financeira promovida por operadoras de grande porte, que reajustaram mensalidades acima da variação dos custos médicos, além dos ganhos com aplicações financeiras, que somaram R$ 8,5 bilhões no ano (Fonte: ANS, Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar, 2025).
O caso da UnitedHealth, nos Estados Unidos, deveria servir como um alerta incontornável: a operadora, uma das maiores do mundo, tornou-se alvo de investigação federal por suposto uso de algoritmos e inteligência artificial para negar sistematicamente tratamentos a beneficiários do sistema Medicare, especialmente pacientes idosos e com doenças crônicas. As denúncias apontam para um modelo de decisão automatizada que ignora particularidades clínicas, priorizando metas de contenção de custos. Trata-se de uma engenharia sofisticada de exclusão - travestida de eficiência - que hoje é objeto de apuração pelo Departamento de Justiça americano, já resultando em perda de valor de mercado e na renúncia de executivos da companhia.
No Brasil, observa-se uma arquitetura operacional semelhante, mas sem as contrapartidas institucionais. Enquanto nos Estados Unidos há mecanismos mais rígidos de fiscalização e responsabilização, aqui predomina a captura regulatória, a morosidade punitiva e a leniência técnica: a negativa automatizada de procedimentos, os pareceres padronizados e a opacidade das auditorias terceirizadas tornaram-se rotina, sem que isso resulte em sanções reais ou revisões estruturais.
A diferença não está no método - que é assustadoramente parecido -, mas na resposta do Estado. Lá, há reação pública e institucional. Aqui, a inércia tornou-se política não declarada porque a ANS (que deveria zelar pelo equilíbrio entre operadoras e beneficiários) aparece como instância capturada pelos interesses das operadoras. Denúncias com prontuários, exames e prescrições são arquivadas sem apuração.
Há registros de denúncias apresentadas à ANS por pacientes, familiares e entidades de defesa do consumidor que, mesmo acompanhadas de exames, prescrições médicas e prontuários, foram arquivadas sem apuração substancial. Soma-se a isso a crítica à composição institucional da agência, frequentemente ocupada por conselheiros ou representantes com histórico de vínculos diretos ou indiretos com empresas do setor regulado - cenário que levanta dúvidas quanto à imparcialidade das decisões e ao efetivo exercício do poder regulatório. O resultado é a blindagem de práticas que, em vez de proteger a saúde, a colocam em segundo plano.
A judicialização da saúde suplementar já alcança uma das maiores proporções do Judiciário brasileiro. Milhares de ações são ajuizadas todos os meses, fazendo da Justiça a principal porta de entrada para tratamentos urgentes. Na prática, o contrato perdeu validade: muitas vezes, o atendimento só se efetiva com liminar. Em alguns casos, como afirmamos, sequer com liminar.
A CPI dos Planos de Saúde não é instrumento de retaliação, mas sim uma reação institucional diante de um colapso assistencial programado. Médicos silenciados, pacientes desamparados, hospitais pressionados e famílias inteiras arruinadas por um sistema que prometia proteção - e entrega desamparo. As evidências existem. As vítimas têm nome. E a omissão já custa vidas.
Se o Parlamento não agir agora, com que legitimidade e com quais dados agirá depois? Quando a exceção se torna rotina e a omissão, norma, o custo já não é político - é humano. A saúde suplementar brasileira configura uma engrenagem institucional de descarte de pessoas - planejada, automatizada, impessoal. Uma eugenia burocrática que separa quem pode ser tratado de quem não vale o investimento. A ausência de resposta institucional já não se sustenta como omissão: transformou-se em adesão dissimulada, travestida de neutralidade.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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