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Política
11/8/2025 12:00
Quando o "coitadismo" vira estratégia política
A democracia moderna se fundamenta na liberdade, na responsabilidade e na convivência plural. Mas e quando esse regime é distorcido, transformado em palco para estratégias simbólicas de vitimização? O "complexo de coitadinho", expressão coloquial para uma postura autoidentificada como vítima, ganha contornos sombrios quando usado como ferramenta política.
Neste artigo, traçamos um percurso interdisciplinar entre psicologia, filosofia política e direito, revisitamos o lendário pôster de Adolf Hitler em 1928, em que ele se pinta de censurado, e o conectamos ao episódio recente no Brasil. Em 5 de agosto de 2025, parlamentares da oposição ocuparam as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, usando fitas na boca como símbolo de suposta censura, em protesto à prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro. Essa comparação entre manipulação histórica e teatro político contemporâneo revela como estratégias vitimistas corroem a legitimidade democrática.
O "Complexo de Coitadinho": da psicologia à manipulação do poder
No campo psicológico, o "complexo de coitadinho" não é uma categoria clínica formal, mas um padrão reconhecível em teorias como a da Psicologia Cognitivo-Comportamental e Análise Transacional: é a postura de negação de responsabilidade, externalização das próprias falhas, manipulação emocional e resistência à mudança.
No plano político, essa postura ganha sofisticação: líderes ou grupos políticos que ocupam o poder se autovitimizam diante da cobrança pública, da imprensa ou das instituições democráticas. O vitimismo converte-se em capital simbólico, gerando empatia, blindagem contra críticas e estabelecendo uma zona de impunidade. O discurso deixa de ser debate e vira dramaturgia, o agressor se propõe como agredido.
Hitler, 1928: o líder que se dizia silenciado
Em 1928, Hitler divulgou um pôster com uma faixa presa à boca, acompanhado pela frase "Um, entre 2.000 milhões de humanos na Terra, não é permitido falar na Alemanha". A imagem encenava uma censura inexistente. O discurso desloca a ordem moral: o opressor apresenta-se como silenciado e as instituições democráticas como opressoras, o ressentimento se eleva à virtude.
Jean-François Lyotard diria que isso caracteriza uma "má-fé", pois é uma manipulação discursiva que busca investir o ressentimento como legitimação política. Umberto Eco, em seus estudos sobre o "ur-fascismo", também destaca esse vitimismo instrumental como um dos mecanismos de dominação e mobilização.
Assim, o vitimismo, pintado de silenciamento, foi a porta de entrada para a supressão da própria democracia.
Fitas na boca e cadeados no plenário: o protesto que parou o Congresso
Se o pôster de Hitler em 1928 mostrou ao mundo como um gesto simbólico pode ser manipulado para construir a narrativa de censura inexistente, o episódio das fitas na boca no Congresso brasileiro, em agosto de 2025, revela que a mesma estratégia ainda encontra eco na política contemporânea. A ocupação das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado por parlamentares da oposição não foi apenas um ato de protesto: foi um movimento calculado para enquadrar as instituições democráticas como opressoras e para mobilizar simpatia política a partir da imagem de suposta mordaça.
A seguir, analisamos como esse ato foi executado e quais repercussões políticas e midiáticas ele gerou.
A ocupação das Mesas Diretoras e suas exigências
Na terça-feira, 5 de agosto de 2025, parlamentares da oposição, alinhados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, ocuparam as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, com fitas adesivas coladas sobre a boca, e, em alguns casos, máscaras e correntes nos braços. O objetivo era impedir a retomada das sessões legislativas até que fossem votadas propostas como:
Durante 24 horas, os parlamentares permaneceram no local em escala de revezamento, inclusive pernoitando nos plenários, revezando-se para obstruir a pauta. O uso simbólico das fitas tornou-se imagem emblemática de obstrução e vitimização calculada.
A repercussão: entre a defesa e a acusação de chantagem institucional
A imprensa qualificou o ato como "obstrução total", "chantagem institucional" e "sequestro simbólico do Legislativo". O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, criticou o movimento como "exercício arbitrário das próprias razões" e "alheio aos princípios democráticos".
O clima político tornou-se tenso: trocas de acusações calorosas, manobras regimentais, ameaças de sanção e intensificação do choque entre Legislativo e Judiciário. O episódio catalisou um dilema urgente: até que ponto protestos simbólicos são expressão democrática e onde começam a minar o próprio pacto democrático?
Liberdade de expressão tem limite? Democracia e responsabilidade em conflito
O direito à manifestação e à liberdade de expressão são pilares democráticos. No entanto, autores como Ronald Dworkin lembram que a liberdade não é um descompromisso: ela exige responsabilidade, especialmente quando abre espaço para discurso de ódio ou manipulação institucional. O célebre aforismo "meu direito acaba onde o do outro começa" segue vigente.
Instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto de San José da Costa Rica reiteram que a liberdade de expressão deve respeitar os direitos humanos e a ordem pública.
O ato das fitas na boca, embora simbólico, provoca uma reflexão séria: ao reproduzir o mesmo truque de Hitler, o opressor se passando por oprimido, essas ações não apenas desafiam limites democráticos, mas reescrevem autonomia como drama político.
Quando a democracia é usada contra si mesma: ressentimento como arma política
A democracia se esvazia quando seus mecanismos formais - eleições, imunidade, liberdade de expressão - são subvertidos para fins antidemocráticos. Estudos sobre "instrumentalização da democracia" mostram como atores políticos usam processos legítimos para produzir corrupção, censura invertida ou perseguição simbólica.
Quando a opinião pública se baseia em doxa (opiniões superficiais), em vez de episteme (conhecimento fundamentado), como analisado por Platão, o terreno está pronto para a manipulação emocional. Surge então a "democracia performática", onde o ressentimento coletivo é induzido como meio de mobilização política.
No Brasil de agosto de 2025, a ocupação das Mesas Diretoras e o silêncio simbólico sublinham essa distorção: o palco deliberativo foi tomado como ambiente de teatro político, desfigurando o debate racional em uma coreografia de ressentimentos.
Síntese crítica: perguntas e aprendizados centrais
Antes de avançar para a conclusão, vale responder a algumas perguntas-chave e destacar os pontos essenciais que emergem desta análise. Eles ajudam a consolidar a compreensão do fenômeno e a situar o leitor diante dos desafios que se impõem à democracia.
Em um momento em que as narrativas se sobrepõem aos fatos e a imagem vale tanto quanto o argumento, é fundamental compreender com clareza o fenômeno que aqui chamamos de "complexo de coitadinho". Trata-se de um padrão psicológico e político marcado pela autovitimização, um expediente que busca escapar da responsabilidade e neutralizar críticas. Não se engane: ele não é exclusivo de regimes autoritários. Pelo contrário, manifesta-se em qualquer contexto onde exista poder e disputa por narrativa - inclusive em democracias consolidadas, como a brasileira.
Diferenciar um protesto legítimo de uma encenação vitimista exige mais do que boa vontade. É preciso análise crítica. Um protesto fundamentado, mesmo contundente, busca abrir canais de diálogo e transformação. Já o vitimismo manipulado prefere fechar as portas da negociação, apostando no bloqueio e na paralisia como formas de pressão.
O episódio recente da ocupação das Mesas Diretoras do Congresso é um exemplo eloquente dessa fronteira borrada. Embora simbólico, o ato violou normas regimentais e colocou em xeque o funcionamento constitucional do Parlamento. Isso demonstra que símbolos carregam peso político real, e podem tanto fortalecer quanto fragilizar as instituições.
Fortalecer a democracia diante de estratégias assim passa necessariamente por três eixos: educação política, responsabilização e transparência. É preciso formar cidadãos capazes de ler o cenário para além das aparências, exigir coerência de seus representantes e sustentar instituições preparadas para resistir à manipulação emocional.
Protagonismo cívico como antídoto à manipulação política
A progressão histórica, de Hitler pintando um falso silenciamento em 1928 até parlamentares brasileiros silenciarem a si mesmos com fita em 2025, revela uma continuidade inquietante: o vitimismo instrumentalizado sempre busca romper o pacto democrático.
Mas democracia exige mais do que direito de falar: ela exige também o dever de ouvir, ponderar e construir coletivamente, como sugeria Karl Popper, a liberdade é também responsabilidade.
O antídoto está no protagonismo cívico formado pela educação política, pela cultura do diálogo crítico e pela vigilância institucional. Quanto mais cidadãos ativos, informados e exigentes, menor o espaço para estratégias que trocam debate por drama, manipulação por máscara.
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O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].