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Sociedade digital
22/8/2025 12:00
No início, parecia inocente. As chamadas "redes sociais" surgiram como uma promessa de reencontro e intimidade. Eram espaços criados para reconectar amigos da escola, da faculdade, da vida. A lógica era simples: adicionavam-se pessoas conhecidas, compartilhavam-se lembranças, reforçavam-se vínculos reais. O nome não era por acaso - rede social implicava laço, confiança, convivência. Era uma ferramenta para aproximar quem já estava próximo.
Mas o ser humano raramente se contenta com o suficiente. A busca por "mais" - mais conexões, mais curtidas, mais visibilidade, mais dopamina - rapidamente contaminou esse projeto inicial. E o que era uma rede social virou uma vitrine. O número de amigos passou a importar mais do que a amizade. Começamos a adicionar desconhecidos, a nos expor para estranhos, a transformar a intimidade em conteúdo e a privacidade em moeda - até mesmo de crianças e adolescentes, cuja imagem passou a circular sem filtros, sem freios, sem discernimento.
Esse "mais" produziu uma resposta química no cérebro. A cada curtida recebida, a cada novo seguidor, disparava-se um pequeno jato de dopamina - o neurotransmissor do prazer e da recompensa. A literatura neurocientífica mostra que esse mecanismo, semelhante ao envolvido no uso de drogas e jogos de azar, reforça o comportamento de busca contínua por aprovação. Tornamo-nos condicionados ao aplauso digital. E como toda dependência, isso nos empurra para doses maiores. Curtidas viraram estímulos. Notificações, pequenos choques de excitação. A espera por reconhecimento virou vício.
Aos poucos, deixou de ser rede social para se tornar mídia social.
O conceito mudou - e com ele, nossa cultura. Se antes compartilhávamos momentos com quem dividíamos afetos, passamos a projetar versões públicas de nós mesmos para um público difuso e imprevisível. A lógica das redes foi substituída pela lógica do palco: audiência, espetáculo, aprovação. A intimidade virou performance. A privacidade, um ativo terceirizado. A exposição precoce, muitas vezes imposta por adultos, converteu crianças em personagens digitais - adultizadas, editadas e lançadas ao julgamento de multidões.
É nesse ponto que a transformação se torna perigosa. Porque as mídias sociais não apenas capturam nossas imagens e palavras: elas rastreiam nossos hábitos, nossos deslocamentos, nossas hesitações. Conhecem nossas fraquezas com mais precisão do que nós mesmos. E vendem esse conhecimento - convertido em dados - a quem estiver disposto a pagar. A economia da atenção virou economia da vigilância.
Nosso cotidiano passou a ser administrado por algoritmos que moldam o que vemos, o que sentimos, o que desejamos. E, mais do que isso, por empresas que decidem, unilateralmente, o que pode ou não permanecer online - mesmo diante de pedidos legítimos de retirada de conteúdo. Quando a lógica da moderação falha, como tantas vezes falha, a exposição deixa de ser apenas um risco abstrato e se converte em ameaça concreta. E o silêncio cúmplice das plataformas torna-se parceria ativa em violações anunciadas.
Há quem diga que vivemos sob o império do Big Brother, do clássico de George Orwell. Mas é mais do que isso. O Big Brother, ao menos, era centralizado. Sabíamos quem observava. Agora, a vigilância é difusa, algorítmica, muitas vezes invisível. Não é apenas um olhar opressor - é um sistema inteiro que lucra com nossa vulnerabilidade. Um panóptico digital onde todos são vigiados e ninguém sabe por quem.
Faltam-nos palavras para descrever essa mutação. Falta-nos, talvez, um novo conceito que nomeie o que emerge entre o esfacelamento da privacidade, a mercantilização da intimidade e a cumplicidade algorítmica com o crime. Vivemos num tempo em que a exposição é voluntária, mas a consequência é involuntária. Um tempo em que, ao aceitar os termos de uso, abrimos mão do direito de existir com dignidade.
Quando a fronteira entre o público e o privado desaparece, desaparece também a noção de que temos algo a proteger. E isso é trágico. Porque, sem privacidade, não há liberdade. E sem liberdade, a democracia se torna uma fachada.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].