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Democracia
20/10/2025 17:00
"O sujeito ideal do domínio totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe distinção entre fato e ficção." A advertência de Hannah Arendt nunca pareceu tão atual. O radicalismo gera engajamento - e é justamente disso que certos grupos têm se aproveitado. Vivemos uma era em que a política deixou de ser um debate de ideias e se converteu num espetáculo de afetos. O que se costuma chamar de polarização é, na verdade, um processo mais profundo: a radicalização digital das sociedades democráticas.
No Brasil, há um equívoco recorrente no uso da palavra "polarização". A imprensa trata o fenômeno como se fosse algo relativamente novo, mas a polarização é inerente a qualquer sistema eleitoral em dois turnos: resulta da disputa entre dois projetos majoritários. O que muda, ao longo do tempo, é a direção dessa disputa. Até 2018, os principais partidos buscavam ampliar o eleitorado e convergir para o centro, construindo maiorias a partir do diálogo. A partir daí, esse eixo se inverteu - os polos passaram a disputar quem grita mais alto nos extremos, impulsionados pelas redes sociais e pelo engajamento que o radicalismo produz. Como observa Giuliano da Empoli em Os Engenheiros do Caos, "para conquistar uma maioria, os novos doutores fantásticos da política não buscam o centro, mas unem os extremos." Essa inversão não é casual: ela é produto direto da lógica algorítmica, que premia o choque, o exagero e a reação imediata.
As redes criaram um ambiente em que o ódio, a raiva e o medo se tornaram valiosas moedas de troca. Os algoritmos - desenhados para maximizar o tempo de tela - descobriram que nada retém mais atenção do que a indignação. E, assim, passaram a recompensar o comportamento extremo. O que antes era exceção, hoje é tendência: a fúria virou estratégia de comunicação.
Foi nesse terreno que floresceram discursos autoritários travestidos de defesa da liberdade. Em outubro de 2020, surgiu a Carta de Madri, lançada pela Fundación Disenso, ligada ao partido espanhol Vox, e assinada por expoentes da direita radical ibero-americana - entre eles, María Corina Machado, José Antonio Kast, Javier Milei e Eduardo Bolsonaro. O documento se apresenta como um manifesto em favor da democracia, mas reproduz a retórica de guerra ideológica: fala em "infiltração", "ameaça comunista" e "sequestro das nações". É um texto que divide o mundo entre "defensores da liberdade" e "inimigos do povo" - uma lógica tão antiga quanto eficaz.
É verdade que também há, no campo progressista, discursos coletivos de alcance continental, como a Declaração Final do XXVI Encontro do Foro de São Paulo (2023), que convoca os povos latino-americanos à integração e denuncia a "ofensiva conservadora e da extrema direita". Mas o tom é distinto: trata-se de uma plataforma política tradicional, não de um manifesto de radicalização. A diferença é que a extrema direita descobriu que o extremismo, aliado aos algoritmos das redes sociais, produz engajamento - e, portanto, poder eleitoral. Transformou a retórica do medo e do ressentimento em estratégia política global.
O problema é que as sociedades não sobrevivem a longo prazo nesse ambiente. Quando o algoritmo premia o ódio e o ódio garante votos, a democracia se torna refém de seus próprios impulsos. A política deixa de ser um espaço de construção de consensos para se tornar um campo de batalha permanente, em que o adversário é tratado como inimigo e o diálogo é confundido com fraqueza.
A radicalização, portanto, não é apenas uma escolha política, mas também um modelo de negócio. O extremismo dá lucro, e por isso é cultivado. Plataformas que deveriam ser espaços de convivência tornaram-se arenas de confronto. As bolhas digitais não apenas separam opiniões - elas fabricam realidades paralelas, em que fatos e evidências perdem valor diante da narrativa que mais emociona.
É por isso que o debate sobre regulação das redes não pode ser confundido com censura. Trata-se, antes, de proteger o espaço público digital, tal como as democracias modernas protegeram, no passado, a imprensa e as urnas. Nenhum regime democrático sobrevive quando o centro é corroído pela histeria permanente.
A política sempre viveu de contrastes, mas a democracia se sustenta sobre um mínimo de confiança mútua. Quando esse chão desaparece, o diálogo cede lugar ao ruído. Não há projeto coletivo possível num país que se alimenta de suspeitas. E é justamente aí que o extremismo prospera: no vazio da confiança e no excesso de emoção.
O Brasil - e o mundo - não estão polarizados. Estão exaustos. Exaustos de ruído, de manipulação, de promessas de pureza moral e de profetas digitais. A radicalização é o sintoma mais visível de uma sociedade que perdeu a paciência com a dúvida e o apreço pela complexidade.
É hora de baixar o tom e recuperar o senso de futuro. As democracias não são apenas sistemas de governo, mas pontes entre gerações. Quando o debate se transforma em trincheira, os muros sobem, e a política deixa de cumprir sua função essencial: criar consensos. É isso que está em jogo - não apenas o presente, mas o mundo que deixaremos para nossos filhos e netos.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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