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Educação política
8/12/2025 16:00
Vivemos um tempo em que o ruído político é intenso, mas a confiança nas instituições é frágil. A combinação entre descrédito generalizado, polarização e desinformação abre espaço para projetos que tensionam - quando não corroem - o núcleo do regime democrático. Não basta, portanto, defender abstratamente a "democracia"; é preciso recolocar no centro do debate quem são os cidadãos, quais direitos efetivamente possuem e como podem participar de forma consciente da vida pública.
A questão que se impõe é direta: quem consegue dialogar com os representados de modo a qualificar o debate público e fortalecer a cultura democrática? Parte decisiva da resposta passa pela Educação Política, entendida não como doutrinação, mas como um processo de formação de sujeitos capazes de ler criticamente a realidade, interpretar interesses em disputa e assumir responsabilidades diante da coisa pública.
1. A longa construção da cidadania no Ocidente
A história da cidadania ocidental é tudo menos linear. Como mostram Dantas e Torelli (2024), trata-se de um processo secular de lutas, rupturas e reinterpretações. O ideal de um governo orientado pelo bem comum percorre diferentes experiências políticas, reconfigurando-se conforme as estruturas sociais e os conflitos de cada época.
Na Antiguidade, ainda que a participação fosse severamente restrita, consolidou-se a intuição de que a vida coletiva não pode ser reduzida à vontade de um só. A noção romana de res publica - a "coisa pública" - já trazia a ideia de que o governo deveria ter como horizonte o interesse comum e não apenas os privilégios das elites patrícias. Na prática, contudo, a exclusão de amplas camadas populares e a captura das instituições por oligarquias acabaram por levar ao esvaziamento desse ideal.
Com a longa hegemonia da Idade Média, o eixo da legitimidade se desloca: o poder político passa a ser justificado pela transcendência, subordinando o temporal ao espiritual. O direito de governar é apresentado como derivado da vontade divina, mediado pela Igreja e pelas monarquias. A cidadania, como hoje a entendemos, simplesmente não existia: prevaleciam vínculos pessoais de vassalagem, estamentos rígidos e pouca mobilidade social.
O cenário começa a mudar com a emergência da modernidade política. Maquiavel desmonta a leitura sacralizada do poder e descreve a política como um campo de forças, movido por conflito, cálculo e correlação de interesses. Ao tratar a ação política com autonomia em relação à moral religiosa, ele inaugura um modo secular de pensar o governo e a disputa pelo poder.
Nos séculos XVII e XVIII, o Contratualismo e o Iluminismo dão novo fôlego a essa transformação. Autores como Locke e Montesquieu elaboram teorias nas quais o poder legítimo se ancora em um pacto entre governantes e governados, limitado por direitos considerados anteriores ao próprio Estado. Vida, liberdade e propriedade passam a ser vistos como direitos naturais, cuja violação descaracteriza qualquer autoridade política. A separação de poderes, por sua vez, surge como garantia institucional contra abusos e arbitrariedades.
É sobre esse pano de fundo que T. H. Marshall sistematiza, no século XX, a ideia de cidadania moderna como a combinação progressiva de três dimensões:
Direitos civis, associados às liberdades individuais e às garantias jurídicas (século XVIII);
Direitos políticos, relativos à participação no poder, especialmente por meio do sufrágio (século XIX);
Direitos sociais, ligados às condições materiais de vida, tais como educação, saúde e trabalho (século XX).
Para Marshall (1967), a cidadania plena depende da integração dessas três esferas, pois de nada adiantaria garantir, por exemplo, liberdade formal de expressão sem que as pessoas tivessem acesso à educação básica que lhes permitisse exercer essa liberdade de maneira efetiva. Dantas e Torelli (2024) retomam essa leitura para mostrar que o ideal democrático contemporâneo é fruto de uma lenta sedimentação histórica, marcada por disputas, revoluções e avanços institucionais.
2. A construção acidentada da cidadania brasileira
No Brasil, o percurso da cidadania foi profundamente condicionado pela colonização escravista, pela concentração fundiária e por uma elite que historicamente tratou o povo como massa administrável, e não como sujeito de direitos. A escravidão, ao naturalizar a desigualdade extrema, deixou marcas profundas nas estruturas sociais, econômicas e simbólicas que atravessam o país até hoje.
A Constituição de 1824, embora tenha instaurado formalmente a independência política, manteve um sistema censitário e excludente. O voto dependia de renda, o que restringia o acesso à vida pública a uma minoria proprietária. A Carta de 1891, por sua vez, proclamou a República, mas não democratizou de fato o poder: consolidou-se a chamada "República Oligárquica", na qual coronéis, grandes proprietários e grupos regionais utilizavam mecanismos como o voto de cabresto para controlar eleições e mandatos.
Ao longo desse período, demandas sociais foram frequentemente tratadas como "caso de polícia", expressando a incapacidade - ou falta de vontade - do Estado em reconhecer direitos ao conjunto da população. O espaço público permaneceu estreito, e a cidadania, incompleta.
A chamada Era Vargas (1930-1945) inaugura uma etapa distinta. De um lado, há forte centralização de poder, supressão de liberdades e práticas autoritárias; de outro, surgem ferramentas importantes de proteção social, como a legislação trabalhista e a formalização de direitos a categorias específicas de trabalhadores. A expressão "cidadania regulada", retomada por Dantas e Torelli (2024), sintetiza essa ambiguidade: ampliam-se alguns direitos sociais, mas sob forte controle estatal, sem plena expansão dos direitos civis e políticos.
Essa trajetória mostra que, no Brasil, os pilares de Marshall foram sendo incorporados de maneira desordenada, frequentemente com avanços em uma dimensão acompanhados de retrocessos em outra.
3. Anos 1980: da luta pela redemocratização à Constituição Cidadã
A década de 1980 costuma ser carimbada como "perdida" em razão da crise econômica, mas, do ponto de vista político, pode ser lida como uma década ganha. Os movimentos sociais, os novos sindicatos, a reorganização de partidos e a emergência de frentes amplas de oposição ao autoritarismo militar abriram caminho para uma poderosa reinvenção do espaço público.
O movimento Diretas-Já se torna símbolo dessa virada: milhões de pessoas ocupam ruas e praças em todo o país, reivindicando algo aparentemente simples, mas historicamente negado - o direito de escolher diretamente o chefe do Executivo nacional. Mesmo derrotada no plano institucional imediato, a campanha minou a legitimidade da ditadura e consolidou a exigência social por um novo pacto político.
Esse processo desemboca na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988). Diferentemente de momentos anteriores, a elaboração da nova Constituição foi marcada por canais de participação inéditos. O uso do Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC) e a apresentação de emendas populares permitiram que sindicatos, movimentos sociais, entidades de bairro, organizações religiosas e grupos temáticos enviassem propostas diretamente aos constituintes.
A Constituição Federal de 1988, batizada por Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã, é o resultado mais visível desse acúmulo de lutas (BRASIL, 1988). Nela se consolidam, de forma articulada, os três eixos da cidadania moderna:
Dantas e Torelli (2024) destacam que essa arquitetura constitucional cria um norte normativo inegociável: o Brasil se reconhece, em seu texto fundador, como uma república comprometida com o Estado Democrático de Direito e com a promoção de uma sociedade livre, justa e solidária.
4. Educação política: conhecimento como condição de resistência democrática
Entretanto, reconhecer a importância da Constituição de 1988 não significa ignorar as fraturas que persistem. A desigualdade extrema, o racismo estrutural, a concentração de renda e a precarização do trabalho mantêm um abismo entre o que está previsto na lei e o que é vivenciado cotidianamente pela maioria da população.
Nesse contexto, a educação política deixa de ser luxo teórico e passa a ser uma necessidade prática. Sem conhecimento histórico e institucional, o cidadão tende a interpretar a política a partir de impressões superficiais, fake news e lideranças personalistas, ficando vulnerável a projetos autoritários travestidos de "salvação nacional".
Educar politicamente não é "converter" pessoas a um partido ou ideologia, mas oferecer ferramentas de leitura da realidade:
Dantas e Torelli (2024) insistem que essa educação deve ser conduzida de forma respeitosa, plural e democrática, permitindo que diferentes perspectivas coexistam, desde que ancoradas em fatos e em respeito às garantias fundamentais. A função da Educação Política, nessa chave, é transformar o sujeito passivo em cidadão ativo, capaz de se posicionar criticamente, participar de processos decisórios e resistir a retrocessos.
Em um cenário de ataques às instituições, discursos antidemocráticos e tentativas de reescrever a história recente, o conhecimento torna-se o principal pilar de resistência. Entender o percurso que levou à Constituição Cidadã, os conflitos que marcaram nossa formação e as promessas ainda não cumpridas da cidadania é condição para que possamos disputar o futuro de maneira consciente.
Mais do que nunca, formar sujeitos politicamente alfabetizados é tarefa estratégica: é isso que separa uma sociedade capaz de defender seus direitos de uma sociedade facilmente capturada por projetos autoritários que se apresentam como "voz do povo", mas desprezam, na prática, os fundamentos da cidadania.
Referências
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 16. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
DANTAS, Humberto; TORELLI, Leandro Salman. Política & Democracia: conceitos e história para a interpretação da realidade. Rio de Janeiro: RenovaBR; Konrad Adenauer Stiftung; Voto Consciente, 2024.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001.
FINLEY, Moses. Política no mundo antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. 4. ed. São Paulo: Vozes, 2010.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MONTESQUIEU, Charles de. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados europeus. São Paulo: Edusp, 1996.
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