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Violência racial

A cor que autoriza o tiro

A lógica seletiva da segurança pública vê ameaça na cor da pele e transforma enganos em rotina letal.

Juvenal Araújo

Juvenal Araújo

22/7/2025 11:00

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Fabrício dos Santos Chaves acordou cedo naquele dia. Como de costume, vestiu sua roupa de policial civil, separou os documentos, conferiu a arma, beijou a esposa e saiu para cumprir o seu dever. Era negro, agente da lei, e mesmo assim, ou talvez por isso, acabou morto por outros policiais. Foi atingido por tiros disparados pelo Batalhão de Polícia de Eventos, no Rio de Janeiro. Não houve conversa, não houve tempo. A cor da sua pele falou mais alto do que a carteira funcional que carregava no bolso.

Fabrício não era bandido. Estava trabalhando. Mas não teve direito ao benefício da dúvida. A explicação dada à família, à sociedade e aos jornais foi curta, fria e repetida: "foi confundido". Uma palavra que vem sendo usada com frequência assustadora quando a vítima é negra. Como se fosse natural, aceitável, até esperado. O "erro" que mata sempre os mesmos não é mais engano, é sistema.

Poucas semanas antes, em outro canto do país, Guilherme Ferreira, 26 anos, também negro, também trabalhador, voltava para casa depois de mais um dia duro de serviço. Tomou um tiro pelas costas. Pelas costas. O autor do disparo: um policial militar. Mais uma vez, o país ouviu o mesmo roteiro, quase como se fosse ensaiado: "foi um engano".

Dois homens negros, em momentos distintos, em cidades diferentes, em rotinas comuns. Ambos tombaram sem aviso, sem direito à explicação. Nenhum dos dois estava armado contra o Estado. Mas ambos foram tratados como ameaça desde o instante em que suas peles foram vistas. Não importa o fardo de trabalho, os boletos pagos, os sonhos de futuro. Quando se é negro no Brasil, a abordagem é quase sempre a mesma: dedo no gatilho antes da voz no rádio.

Racismo estrutural transforma abordagens policiais em execuções.

Racismo estrutural transforma abordagens policiais em execuções.Danilo Verpa/Folhapress

Essas mortes dizem muito sobre quem somos enquanto sociedade. E dizem ainda mais sobre quem escolhemos preservar e quem deixamos morrer. Não há mais como fingir surpresa. Segundo o Atlas da Violência, quase 8 em cada 10 pessoas assassinadas no Brasil são negras. Quando olhamos apenas para os casos de letalidade policial, esse número sobe ainda mais. Isso não é coincidência. É método. É estrutura. É o reflexo de um país que naturalizou o extermínio da população negra, sobretudo dos jovens das periferias.

Fabrício era agente do Estado. Atuava dentro da legalidade. Mesmo assim, não teve tempo sequer de mostrar sua identificação funcional. Foi alvejado como inimigo. A brutalidade não foi resultado de despreparo. Foi produto de um treinamento que associa pele negra ao perigo, independentemente do contexto. Guilherme não usava uniforme, mas carregava dignidade. Trabalhava, estudava, sonhava. Foi morto pelas costas, literal e simbolicamente. O tiro que o matou é o mesmo que atravessa a vida de milhares de jovens negros todos os anos. É o disparo da negligência institucional, do racismo encoberto pela farda, das investigações arquivadas.

Ambos os casos ilustram um problema que vai muito além da segurança pública. Trata-se de um pacto histórico, firmado sem palavras, mas com muitas mortes, onde a cor da pele segue sendo fator determinante para o valor de uma vida. A sociedade brasileira ainda não se deu conta - ou se deu, mas escolhe ignorar - que estamos diante de um projeto contínuo de exclusão. Um projeto que começa na infância, com acesso desigual à educação, passa pela juventude, com portas fechadas no mercado de trabalho, e termina, muitas vezes, no caixão lacrado, sem justiça, sem luto coletivo, sem reparação.

Não se trata de exceções. Trata-se de uma política seletiva de segurança pública, que protege uns e extermina outros. Uma polícia que mata os seus, como no caso de Fabrício, e que insiste em ver suspeição onde só há cor. Não há mais espaço para discursos de negação. É urgente exigir formação antirracista nas academias de polícia, protocolos de abordagem com uso racional da força, controle externo e responsabilização efetiva de agentes, e principalmente, uma política de segurança que reconheça a humanidade de todos, inclusive dos negros.

Porque se um policial negro fardado e identificado não está seguro, o que esperar dos jovens negros nas periferias, sem crachá e sem colete? Não, não foi engano. Foi racismo. E enquanto o Brasil não encarar essa verdade, continuaremos contando cadáveres e ouvindo desculpas.

Gritar por justiça não é agredir instituições. É exigir que o Estado pare de escolher quem vive e quem morre com base na cor. Fabrício e Guilherme tinham planos. Tinham nome. Tinham história. E o país precisa parar de aceitá-los apenas como estatística. Eles não foram exceção. Foram mais dois.

E você, leitor, até quando vai achar que é só mais um caso?


O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].

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violência policial racismo estrutural Segurança Pública
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