As duas normas são de anistia política, mas são diametralmente opostas. Isso porque há dois tipos de leis de anistia: as leis de memória e as leis de esquecimento, que são as leis de autoanistia.
A Lei de Anistia de 79 é uma lei de memória. Isso significa dizer que nada foi apagado, esquecido. Ao contrário, as ações das pessoas que foram perseguidas pelo Estado ditador são valorizadas, como ações em defesa ou resistência pela democracia. Por isso, a lei de 79 foi o início da redemocratização. Ainda assim, naquele primeiro momento, não foram todas as pessoas perseguidas (presos políticos, exilados) que foram anistiados. A lei previa uma exceção, que eram os chamados crimes de sangue, e excetuava da anistia os condenados por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Ou seja, alguns condenados continuaram exilados e não podiam voltar ao Brasil sob pena de serem presos aqui porque não estavam anistiados. Alguns anos depois a anistia foi estendida a essas pessoas também.
Anistia de 79 reconheceu vítimas; as novas propostas tentam apagar crimes golpistas.Freepik
Em contrapartida, as propostas que tramitam hoje na Câmara dos Deputados são de leis de autoanistia. Esse tipo de lei é inconstitucional. Então vamos ver as diferenças:
- As leis de memória não "passam uma borracha" no que aconteceu, mas ao contrário, lembram e valorizam as vítimas do Estado ditador. As leis de autoanistia querem "passar uma borracha" no passado e fazer de conta que nada aconteceu, com a justificativa de que é necessário deixar o que aconteceu no passado, deixar para trás, para seguir em frente com a vida e pacificar o país.
- As leis de memória significam uma espécie de arrependimento do Estado por ter perseguido cidadãos que estavam resistindo ao arbítrio, e por isso são reconhecimento do erro do Estado por ter se transformado em um Estado de exceção. Em outras palavras, as leis de memória servem a toda a sociedade para lembrar que naquele período o Estado deixou de ser um Estado de Direito e passou a ser um Estado ditador; que isso é nocivo e não deve acontecer nunca mais. Por isso, as leis de memória LEMBRAM tudo que aconteceu e assim permitem, inclusive, que as vítimas sejam indenizadas por terem sofrido uma perseguição política que jamais deveria ter acontecido. São leis de anamnese e não de amnésia.
- As leis de autoanistia apagam, para todos os efeitos jurídicos, os eventos ocorridos no período. São chamadas de autoanistia porque o mesmo Estado que perseguiu, que agiu com arbítrio e, portanto, deixou de ser Estado de Direito, agora se apresenta como Estado de Direito e ESQUECE tudo que aconteceu. Nada pode ser lembrado. É uma amnésia imposta pelo Estado a todas as pessoas. Se alguém foi prejudicado não poderá provocar o Judiciário, por exemplo, para pedir indenização, porque para todos os efeitos jurídicos, nada aconteceu naquele período da lei. Por isso essas leis são as leis de anistia política de esquecimento.
- Por fim, a lei de anistia de memória de 79, exatamente por reconhecer o erro do Estado ter se transformado em ditador, valoriza aqueles que resistiram e lutavam por democracia, e é exatamente por isso que a Lei de Anistia de 79 é constitucional. Por isso ela está em vigor, porque está de acordo com a Constituição de 88, que estabelece e protege o Estado de Direito, e repudia a ditadura. A proposta de lei de autoanistia, ao contrário, pretende fazer de conta que não houve trama golpista para abolir o Estado de Direito, nem que houve execução de atos para dar um golpe de Estado em diferentes momentos desde 2021 até agora. Ou seja, aprovar essa lei de autoanistia seria como o Estado brasileiro dizer que embora não houvesse ditadura nenhuma no Brasil, todas as pessoas que são favoráveis à ditadura, que propagam o autoritarismo, que repudiam o Estado de Direito e a democracia, e consequentemente desrespeitam a Constituição, todas essas pessoas são perdoadas e o Estado de Direito admite deixar de ser um Estado de Direito, e quem sabe, quando as condições forem mais favoráveis, voltar a ser uma ditadura. Por isso as leis de autoanistia são inconstitucionais: a Constituição de 88 não admite que o Estado de Direito se transforme em ditadura. Ao contrário, estabelece os mecanismos de defesa do Estado de Direito e criminaliza as ações para abolir a democracia e o Estado de Direito.
Em resumo, leis de anistia política de memória são constitucionais, e podem existir no Brasil. Leis de autoanistia (são as de esquecimento) são inconstitucionais e não podem existir. Leis de memória são terapêuticas e curam as feridas. Leis de autoanistia traumatizam ainda mais e perpetuam a violência.
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