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Henrique Fróes
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27/6/2020 | Atualizado 10/10/2021 às 16:58
Dentre essa diminuta elite intelectual, destaca-se o humanista italiano Lodovico Settembrini. Dele partirão as críticas mais ácidas aos costumes pervertidos do lugar, bem como as tentativas de educar a alma algo indolente e fascinada pela doença e pela morte de Hans Castorp. Herdeiro dos ideais iluministas europeus, o inesquecível personagem acaba revelando os limites (e contradições) da "crença" na razão, no progresso e na cultura letrada como guias infalíveis para a obtenção de um futuro melhor para a humanidade - como a Escola de Frankfurt bem mostrará nas décadas seguintes.
No seu furor pedagógico, Settembrini não poupa nem uma das grandes paixões do jovem herói (e do próprio Thomas Mann, vide outra de suas obras-primas, Doutor Fausto): a música. Para ele, é a forma de arte mais politicamente suspeita, pois representa tudo o que existe de semiarticulado, de duvidoso, de irresponsável e de indiferente. Assim, a música exerceria uma influência diabólica em nós, por entorpecer e estorvar nossa atividade e progresso. Sábias (e vãs) palavras, pois como resistir àquela sympathy for the devil?
Jornada espiritual
Hans Castorp é um jovem que nitidamente necessita de aconselhamento intelectual/espiritual, e Settembrini logo se dá conta disso. Órfão de pai e mãe, ele sempre cumpriu as tarefas que a vida lhe impôs e atendeu às expectativas alheias sem questionamento e sem entusiasmo. Seus momentos de prazer se resumem a desfrutar dos inseparáveis charutos Maria Mancini. Por isso, a obrigação de permanecer em tratamento no sanatório não é vista com maus olhos por ele, cuja vida "lá embaixo" nunca lhe foi muito atraente. Castorp é, nas palavras do próprio narrador, um sujeito medíocre, daqueles certinhos demais por pura falta de imaginação. Fosse outra a época, poderia ter sido facilmente cooptado para engrossar as fileiras do Partido Nazista, por exemplo.
Mas Hans Castorp é salvo da mediocridade por sua disposição a discutir ideias e a viver novas experiências: enquanto submete-se ao tratamento, adota como lema placet experiri (algo como "prazer em experimentar", em latim). É nesse espírito que ele se permite viver uma paixão transformadora pela irritantemente atraente Cláudia Chauchat. A russa de olhos quirguizes e talhe felino lhe fará entrar em contato com seus desejos mais obscuros e irracionais e lhe reservará boas e más surpresas.
Na verdadeira jornada espiritual que vive nas alturas, acompanhamos o jovem Castorp a desenvolver sua autoconfiança e autonomia enquanto aprende a elaborar seus próprios pensamentos a partir das influências que recebe de Settembrini e de outros personagens. É, para usar uma noção proposta pelo psicoterapeuta suíço Carl G. Jung, um exemplar paradigmático do processo de individuação, cujo ápice encontra-se no famoso capítulo intitulado Neve, marcado justamente por um sonho repleto de arquétipos. Nesse sentido, A Montanha Mágica é um dos melhores representantes do gênero romance de formação, tal como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
Opção profilática
A leitura d'A Montanha Mágica nesses dias turbulentos e ameaçadores foi profilática. A impaciência daqueles personagens que, desrespeitando as recomendações médicas, interrompiam o tratamento para voltar às suas vidas rotineiras (e, pouco depois, morrer) me servia de alerta constante para não relaxar a quarentena. Preferia escandalizar-me com a insensibilidade do doutor Behrens diante da morte de seus pacientes à indiferença sociopata de alguns de nossos dirigentes com a tragédia (evitável) de dezenas de milhares de vítimas da covid-19. E cada vez que me deparava com umas discussões no Twitter sobre "quem pode entrar na frente ampla?", ou "o país não aguenta outro impeachment!", eu corria para as páginas do romance ansiando por mais um debate com o inesquecível Settembrini.
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