O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar, nesta sexta-feira (14), se o Brasil seguirá exigindo filiação partidária para todas as candidaturas a presidente, governador, prefeito e senador ou se abrirá espaço para as chamadas candidaturas avulsas, aquelas em que o cidadão disputa sem estar ligado a nenhum partido político. O julgamento acontece no Plenário virtual e deve se estender por sete dias, com cada ministro depositando seu voto no sistema, sem debate presencial.
A decisão, em tese, pode mexer nas regras do jogo já para as eleições de 2026 e redefinir o papel dos partidos políticos no sistema eleitoral brasileiro. O caso foi relatado pelo ex-ministro Luís Roberto Barroso, cujo voto, apresentado em maio, servirá de ponto de partida para os demais integrantes da Corte se manifestarem. Na ocasião o ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo para analisar o recurso.
Veja o voto deixado por Barroso.
Recém-aposentado, Luis Roberto Barroso deixou seu voto contrário à liberação de candidaturas sem partido no país. Pedro Ladeira/Folhapress
O que está em jogo
Hoje, o modelo brasileiro é rigidamente partidário: a Constituição exige filiação a partido e escolha em convenção para que alguém possa ser candidato a qualquer cargo eletivo. A Lei Geral das Eleições ainda determina um prazo mínimo de filiação (atualmente seis meses antes do pleito). Na prática, os partidos detêm o monopólio das candidaturas.
O Recurso Extraordinário (RE) 1.238.853, que o STF passa a julgar, discute justamente se essa exigência é compatível com: a Constituição, que garante direitos políticos; e com o Pacto de San José da Costa Rica, tratado internacional de direitos humanos do qual o Brasil é signatário, e que assegura o direito de votar e ser votado sem mencionar filiação partidária.
Como o processo tem repercussão geral reconhecida (Tema 974), o que o STF decidir valerá para todos os casos semelhantes, passando a orientar todo o sistema eleitoral.
O caso que levou o tema ao STF
A discussão começou em 2016, quando dois cidadãos tentaram registrar uma chapa independente para disputar a Prefeitura do Rio de Janeiro, sem filiação a qualquer partido. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio e, depois, o Tribunal Superior Eleitoral negaram o pedido, sob o argumento de que a filiação partidária é condição de elegibilidade prevista no artigo 14 da Constituição.
Os candidatos recorreram ao STF alegando:
- violação a direitos políticos previstos na Constituição;
- e incompatibilidade da exigência de filiação com o Pacto de San José, cujo texto só autoriza restrições ao direito de ser candidato por critérios como idade, nacionalidade, residência, instrução, capacidade civil ou condenação penal.
A partir daí, o Tribunal:
- reconheceu a repercussão geral do tema em 2017, ao entender que a questão tem impacto geral sobre o sistema eleitoral;
- convocou audiência pública em 2019, em que Barroso ouviu partidos, especialistas, movimentos sociais e entidades da sociedade civil, reunindo argumentos a favor e contra as candidaturas avulsas.
O que diz o voto de Barroso
No voto já disponibilizado no processo, o então ministro e relator Luís Roberto Barroso faz um longo percurso histórico sobre o papel dos partidos no Brasil, reconhece a crise de representatividade partidária e registra que a maior parte das democracias admite algum tipo de candidatura independente, em geral condicionada a um patamar mínimo de apoio popular.
Apesar disso, ele propõe uma tese restritiva. Ao final do voto, Barroso conclui pela manutenção do modelo atual e sugere a fixação da seguinte tese de repercussão geral: "Não são admitidas candidaturas avulsas no sistema eleitoral brasileiro, prevalecendo a filiação partidária como condição de elegibilidade, nos termos do art. 14, § 3º, V, da Constituição".
Em linhas gerais, os principais pontos do voto são:
- Texto claro da Constituição - O artigo 14, § 3º, V, exige expressamente filiação partidária como condição de elegibilidade. Para Barroso, não se trata de lacuna da Constituição, mas de escolha deliberada do constituinte.
- Limites do Pacto de San José - O voto reconhece a força supralegal do tratado, mas lembra que a própria Corte Interamericana já admitiu que países podem estabelecer regras adicionais para organizar seus sistemas políticos, desde que proporcionais e voltadas à ampliação da participação democrática. Assim, a exigência de filiação não violaria, por si só, o Pacto.
- Papel dos partidos na democracia representativa - Barroso ressalta que os partidos estruturam a disputa eleitoral, agregam interesses, organizam bancadas e dão base à governabilidade. Candidaturas avulsas poderiam, na visão dele, aumentar a fragmentação e estimular personalismos, especialmente num contexto em que o Congresso já é altamente pulverizado.
- Quem deve mudar as regras - O relator sustenta que a eventual adoção de candidaturas avulsas envolve escolhas políticas complexas (regras para financiamento, propaganda, acesso a debates, quociente eleitoral etc.) e, por isso, deveria ser feita preferencialmente pelo Congresso, e não por decisão judicial.
Argumentos a favor das candidaturas avulsas
Os defensores das candidaturas independentes sustentam que:
- A maioria dos países democráticos adota modelo misto, permitindo candidaturas por partido e avulsas, em geral condicionadas a assinaturas de apoio (0,1% a 1% do eleitorado, a depender da legislação).
- O princípio pro persona, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, manda aplicar sempre a norma mais favorável ao exercício dos direitos políticos; nesse raciocínio, a exigência de filiação seria uma barreira burocrática injustificável à participação.
- Crise de representatividade - Partidos com pouca democracia interna, denúncias de mau uso de recursos e forte controle das cúpulas sobre as candidaturas restringem o acesso de novas lideranças, especialmente de grupos vulnerabilizados e agendas minoritárias.
- Pacto de San José - Como a Convenção não menciona filiação como critério de restrição ao direito de ser eleito, a exigência brasileira seria mais restritiva que o padrão de proteção de direitos políticos previsto no tratado.
Esse campo vê nas candidaturas avulsas uma forma de: abrir uma "válvula de escape" para quem não se vê representado pelos partidos; atender um eleitorado descrente do sistema; e ampliar a competição política, enfraquecendo o monopólio partidário.
Argumentos contrários
Os críticos da mudança alertam para uma série de riscos:
- Enfraquecimento dos partidos - Num sistema federativo e presidencialista, com Legislativo fragmentado, tirar os partidos do centro do processo eleitoral poderia agravar a falta de coordenação política.
- Personalismo e "salvadores da pátria" - A possibilidade de candidaturas fortes e completamente descoladas de estruturas partidárias poderia reforçar a lógica de lideranças individuais, em detrimento de programas coletivos.
- Fragmentação do sistema - Com mais candidatos isolados, haveria risco de pulverização de votos, especialmente em cidades médias e grandes, com impacto na governabilidade.
Desafios práticos - Seria preciso redesenhar regras de:
- distribuição do fundo eleitoral e do tempo de TV;
- fiscalização de contas de campanha;
- organização da propaganda e dos debates;
- funcionamento do Legislativo (blocos, liderança, relatorias). Técnicos do TSE já alertaram para a complexidade de adaptar sistemas de registro e apuração a esse novo modelo.
Por fim, uma ala importante sustenta que a própria Constituição consagra a centralidade dos partidos, e que um tratado internacional não pode, por via interpretativa, revogar uma opção constitucional explícita.
Como será o julgamento
O caso será analisado no plenário virtual:
- período de votação: de 15 a 22 de agosto;
- cada ministro deposita seu voto no sistema, que fica visível aos demais;
- não há debate oral, mas qualquer ministro pode pedir destaque para levar o caso ao plenário físico, com discussão ao vivo e transmissão.
Como o tema tramita há oito anos e já passou por audiência pública, a expectativa é que o STF finalmente feche posição agora, sob pena de deixar o sistema eleitoral em suspenso às vésperas do prazo-limite: mudanças nas regras de eleição precisam ocorrer, em regra, até um ano antes do pleito em que vão ser aplicadas.
Cenários possíveis
1. STF acompanha o voto de Barroso e mantém o modelo atual
Nesse cenário, a Corte:
- reafirma que não são admitidas candidaturas avulsas no sistema brasileiro;
- fixa tese de repercussão geral vinculante (Tema 974), fechando a porta para novas ações com o mesmo argumento;
- manda um recado claro de que qualquer mudança terá de ser feita por emenda constitucional ou reforma política aprovada pelo Congresso.
Na prática:
- nada muda para 2026 - continua obrigatório:
- filiar-se a um partido;
- ser escolhido em convenção;
- cumprir os prazos atuais de filiação e registro;
- movimentos que defendem candidaturas independentes passam a concentrar esforços no Legislativo, pressionando por uma PEC.
Politicamente, partidos respiram aliviados, preservando seu monopólio sobre as candidaturas, mas continuam sob pressão para democratizar internamente seus processos de escolha.
2. STF abre candidaturas avulsas já para 2026
É o cenário de maior impacto imediato, e também o mais complexo.
Para isso, a Corte teria de:
- reinterpretar o artigo 14 da Constituição à luz do Pacto de San José (controle de convencionalidade);
- ou admitir uma mutação constitucional, entendendo que o mesmo dispositivo, lido em contexto atual, não impede candidaturas independentes.
Possíveis consequências:
- explosão de demandas de cidadãos interessados em se lançar sem partidos, em especial em grandes capitais e nas disputas para prefeito e Senado;
- corrida do TSE para adaptar:
- sistemas de registro e julgamento de candidaturas;
- layout de urna e boletins de urna;
- regras de propaganda, debates e prestação de contas;
- pressão imediata sobre o Congresso para aprovar uma lei estabelecendo:
- percentual mínimo de assinaturas de apoio;
- regras de financiamento e acesso a recursos;
- critérios para participação em programas de TV e debates;
- forma de atuação de eleitos avulsos no Legislativo (bancadas, liderança, relatorias, CPIs).
Esse caminho pode:
- estimular renovação e engajamento político, respondendo à crise de representatividade;
- mas também acentuar personalismos e gerar insegurança jurídica no curto prazo, se a legislação não acompanhar a velocidade da decisão judicial.
3. STF reconhece a possibilidade, mas posterga os efeitos
Um meio-termo seria o Tribunal afirmar que candidaturas avulsas são compatíveis com a Constituição, em tese; mas modular os efeitos, estabelecendo que só poderão valer após o Congresso aprovar.
4. STF devolve o tema à política
Por fim, há a hipótese de a maioria entender que:
- a exigência de filiação é uma escolha política do constituinte;
- o Pacto de San José não revoga texto claro da Constituição;
- e que, portanto, não cabe ao Judiciário redesenhar o modelo eleitoral, limitando-se a estimular o debate no Legislativo.
Na prática, o STF manteria as regras como estão, reafirmaria o papel dos partidos e encerraria, do ponto de vista judicial, a discussão sobre candidaturas avulsas - ao menos até que uma futura emenda constitucional volte a colocar o tema em pauta.