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Infância
16/9/2025 9:53
As crianças brasileiras estão sendo empurradas para a vida adulta antes da hora. Todos os dias, milhares são expostas em redes sociais a padrões de sexualização, cobrança estética, estímulo ao consumo e até conteúdos violentos. O fenômeno da adultização precoce deixou de ser exceção e tornou-se regra. Em 2024, cerca de 24,5 milhões de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos (93% da faixa etária) eram usuários de internet no Brasil, segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil.
A maioria já está presente em plataformas de alto impacto: 91% dos adolescentes de 15 a 17 anos usam WhatsApp, 70% das crianças de 9 a 10 anos estão no YouTube, enquanto redes de forte apelo estético, como Instagram e TikTok, já alcançam mais de 80% dos adolescentes mais velhos. Esses dados mostram que a infância, hoje, está praticamente colonizada pelo ambiente digital. A pergunta é direta: estamos realmente protegendo nossas crianças ou apenas assistindo, inertes, ao aumento de sua vulnerabilidade?
A resposta do Congresso foi o chamado ECA Digital (projeto de lei 2.628/2022), já aprovado pela Câmara e pelo Senado, agora à espera da sanção presidencial. A proposta cria um marco regulatório para proteger crianças e adolescentes em redes sociais, jogos eletrônicos, aplicativos e plataformas de vídeo. Prevê a obrigação de verificação etária, controles parentais e filtros de conteúdo, além de sanções que vão de advertências a multas de até R$ 50 milhões e até mesmo a suspensão de atividades em território nacional em caso de descumprimento.
É preciso dizer sem rodeios: a adultização digital é uma violação direta à Constituição Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Expor menores a contextos que os transformam em miniadultos, sexualizados, consumistas e vulneráveis equivale a ignorar o princípio da proteção integral previsto no art. 227 da Carta de 1988 e no art. 4º do ECA. O atraso em agir já é vergonhoso. E o risco agora é criar um texto que, embora histórico no papel, falhe na prática e se transforme em apenas mais um troféu político.
O texto aprovado traz inovações, como a criação de uma autoridade independente para fiscalizar provedores digitais, editar normas e orientar sua atuação. Mas suas contradições saltam aos olhos. Ao reforçar a responsabilidade dos pais, a lei desconsidera que nem todas as famílias têm acesso a recursos, tempo ou conhecimento para monitorar a vida digital dos filhos. Ao mesmo tempo, entrega às big techs o poder de decidir o que pode ou não circular, sem garantir mecanismos de contestação claros. O risco é abrir espaço para censura velada e prejudicar conteúdos jornalísticos, educativos ou culturais.
Não é coincidência que a lei tenha surgido após a viralização de um vídeo-denúncia que escancarou a exploração infantil em plataformas populares. É legítimo que a comoção social mobilize o Legislativo, mas legislar no calor de crises costuma gerar normas frágeis e superficiais. A proteção da infância não pode depender de escândalos pontuais. Precisa de políticas públicas estruturantes: alfabetização digital nas escolas, campanhas de orientação para famílias vulneráveis, investimentos em fiscalização e formação cidadã sobre uso consciente da internet.
Outro ponto crítico é a dificuldade de implementar medidas como a verificação etária em escala global. Plataformas internacionais operam em dezenas de países com legislações diversas e nem sempre aplicam recursos tecnológicos de forma uniforme. Se hoje até ferramentas básicas de bloqueio de conteúdo falham em impedir a circulação de vídeos abusivos no YouTube ou no TikTok, como acreditar que medidas mais complexas terão aplicação universal?
O risco é que o ECA Digital, sem cooperação internacional e sem investimentos consistentes, vire apenas uma lei de forte apelo simbólico e baixa efetividade. Além disso, há o dilema da liberdade de expressão. O projeto de lei não traz parâmetros claros para distinguir conteúdos nocivos de conteúdos legítimos. Isso pode levar à moderação excessiva e entregar às empresas de tecnologia o poder de arbitrar, de forma opaca, o que circula no debate público. Ao tentar proteger crianças, o país pode acabar alimentando um problema democrático: transformar plataformas privadas em árbitros do que pode ou não ser dito.
O relator no Senado definiu o projeto como "pioneiro". É verdade. Mas pioneirismo exige responsabilidade. O Brasil já possui experiências como o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que trouxe princípios claros de liberdade, privacidade e neutralidade de rede. O ECA Digital, se não for acompanhado de políticas públicas firmes e fiscalização independente, corre o risco de inverter essa lógica e restringir direitos em nome de uma proteção mal calibrada.
O país precisa decidir se quer apenas reagir a escândalos midiáticos ou se vai planejar um futuro digital em que a infância seja realmente prioridade absoluta. Enquanto não houver coragem para encarar o problema com seriedade, seguiremos criando normas que soam bem no papel, mas não mudam a realidade. E quando a próxima geração olhar para trás, talvez conclua que falhamos novamente. A diferença é que, desta vez, não haverá filtro digital capaz de apagar essa marca. E, nesse dia, será impossível culpar apenas as plataformas: a omissão será de todos nós.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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