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Reforma Tributária
7/10/2025 9:00
A história da tributação confunde-se, em larga medida, com a própria história dos mecanismos criados pela humanidade para regular e disciplinar os seus comportamentos coletivos. O primeiro tributo com esse viés de que se tem notícia remonta a Pedro, o Grande, czar da Rússia e artífice de São Petersburgo, capital imperial por dois séculos até a Revolução de 1917. Incomodado com a aparência "pouco ocidental" de seus súditos, Pedro instituiu um imposto sobre o uso de barba e bigode, exigido daqueles que se recusassem a adequar sua imagem ao ideal civilizatório por ele concebido.
De toda forma, em última análise, todo tributo tem vocação arrecadatória. Tal realidade não passou despercebida aos norte-americanos, que, após proibirem o consumo de álcool em 1919 (18ª Emenda à Constituição), revogaram a medida em 1933 (21ª Emenda), compelidos pela necessidade de ampliar as receitas estatais para enfrentar a crise econômica deflagrada pelo crash de 1929. A exclusão do álcool do rol de produtos tributáveis - consequência natural da vedação ao seu comércio - produziu um déficit fiscal de tal magnitude que superou a pretensão inicial de erradicar o vício.
No Brasil, desde o século XIX, a tributação específica sobre tabaco e álcool - posteriormente estendida a produtos como cartas de baralho - consolidou-se como instrumento de intervenção estatal. O Imposto de Consumo, rebatizado de IPI em 1965, evidencia que a função extrafiscal do tributo sempre conviveu com sua finalidade arrecadatória. Em tempos recentes, políticas tributárias incentivaram a produção de automóveis "populares", com motores abaixo de mil cilindradas, beneficiados por alíquotas reduzidas. Se menos tributo tende, em tese, a estimular o consumo, mais tributação não implica, necessariamente, a sua retração, sobretudo quando se trata de bens profundamente arraigados no cotidiano. Ainda assim, consolidaram-se, na segunda metade do século XX, os chamados sin taxes, impostos destinados, ao menos retoricamente, a corrigir hábitos tidos por deletérios - notadamente o consumo de álcool e tabaco -, embora inexista comprovação empírica de que a elevação da carga tributária tenha sido causa determinante de sua redução.
No Brasil contemporâneo, a reforma tributária reacendeu o debate sobre a tributação adicional incidente sobre duas espécies da classe das bebidas açucaradas: refrigerantes e refrescos. A proposta de submetê-las a um Imposto Seletivo (IS), sob o argumento de conter a escalada da obesidade, apresenta-se, ao mesmo tempo, como panaceia moralizante e expediente arrecadatório disfarçado. O tributo é alardeado como remédio amargo e eficaz: bastaria encarecer o produto para que florescesse, quase por milagre, a saúde coletiva. O Direito Tributário, porém, quando manejado com rigor, exige que a retórica ceda espaço à evidência - e esta, no caso, é avara em comprovar os resultados prometidos.
Estudos conduzidos pela Fundação Getúlio Vargas demonstram que a majoração da tributação sobre refrigerantes não induz a migração significativa para alternativas mais saudáveis. Um aumento de 1% no preço resulta em acréscimo ínfimo, de apenas 0,21%, no consumo de sucos igualmente açucarados. O consumidor, diante do sobrepreço, não abandona a caloria líquida: apenas a substitui por produtos análogos ou mais baratos. A saúde pública, suposto destinatário da medida, permanece indiferente às expectativas legislativas.
Outro estudo da FGV aponta que idade, renda e, sobretudo, inatividade física são os principais fatores determinantes do excesso de peso no Brasil. A própria Organização Mundial da Saúde reconhece que a obesidade tem etiologia multifatorial, sendo produto não apenas do açúcar, mas de padrões de vida urbanos e sedentários. À vista disso, a solução reducionista de tributar refrigerantes assemelha-se a um remédio homeopático aplicado a uma moléstia sistêmica.
A regressividade constitui outro estigma incontornável. O sistema tributário brasileiro, notoriamente regressivo ao concentrar mais de metade da arrecadação sobre o consumo - em contraste com a média de 30% nos países da OCDE -, impõe às bebidas não alcoólicas carga aproximada de 37%, que, em alguns estados, supera 45%. A criação de um novo imposto seletivo representaria, assim, um fardo adicional ao consumidor, especialmente ao de baixa renda, justamente aquele que o Estado deveria tutelar.
A experiência internacional tampouco legitima a medida. No Reino Unido, a tributação graduada conforme o teor de açúcar induziu reformulações industriais, mas não alterou significativamente os índices de obesidade. Nos Estados Unidos, observou-se aumento de arrecadação sem redução relevante no peso médio da população - apenas substituição parcial por outros alimentos igualmente calóricos. Em um país já marcado por elevada carga tributária, adotar soluções comprovadamente ineficazes equivaleria a agravar distorções sem contrapartida social.
Nada disso significa, evidentemente, desprezar a preocupação legítima com a saúde pública. O que se questiona é a adequação do instrumento escolhido. A tributação, embora possa ter função pedagógica, não deve ser ingênua. No caso das bebidas açucaradas, a elevação do preço não enfrenta as causas estruturais do problema. Políticas públicas integradas - educação alimentar, rotulagem clara, restrição de publicidade dirigida a crianças, incentivo à atividade física e subsídios a alimentos in natura - revelam-se mais eficazes e menos onerosas. O custo do tratamento da obesidade no Brasil, ainda modesto (0,01% do PIB, contra 2,08% nos Estados Unidos), indica que há espaço para estratégias preventivas mais racionais e equitativas.
Mais grave, contudo, é o vício de inconstitucionalidade que contamina a proposta. Enquanto refrigerantes e refrescos são onerados pelo imposto seletivo, o açúcar permanece confortavelmente alocado na cesta básica, livre de tributação por ser considerado bem essencial. É como se o Estado, com uma mão, o consagrasse como alimento indispensável, e, com a outra, o demonizasse como veneno social ao ser incorporado às bebidas. Tal incongruência viola o princípio da igualdade, que impõe tratamento uniforme a bens de mesma natureza. A quebra da isonomia é ainda mais evidente ao se constatar que apenas duas espécies - refrigerantes e refrescos - foram eleitas para a oneração, enquanto achocolatados, energéticos, isotônicos e bebidas vegetais, igualmente açucarados, permanecem à margem. A igualdade tributária, pilar estruturante do sistema constitucional, não tolera distinções arbitrárias.
Em suma, o imposto seletivo sobre bebidas açucaradas, apesar de seu verniz virtuoso, padece de vícios insanáveis: é contraditório diante da desoneração do açúcar e da exclusão de outras bebidas igualmente açucaradas, ineficaz no combate à obesidade e regressivo em seus efeitos sociais. Mais do que um "tributo do pecado", revela-se um tributo à incoerência: promete saúde, mas entrega desigualdade; proclama modernidade, mas perpetua as distorções históricas do sistema. Se o propósito for genuinamente protetivo - e não mero artifício arrecadatório -, a solução deverá residir em estratégias coerentes, baseadas em evidências e comprometidas com a justiça fiscal.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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