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Segurança pública
19/11/2025 13:00
1. Introdução
Nas últimas operações policiais em favelas brasileiras, a retórica de "guerra contra o crime" tem sido frequentemente acompanhada por termos como "narcoterrorismo" ou "terrorismo interno". Em maio de 2025, o governo brasileiro recusou pedido dos Estados Unidos para classificar duas facções como organizações terroristas, alegando que a legislação doméstica não comporta tal enquadramento genericamente.
Esse contexto exige um exame crítico: o que implica juridicamente e geopoliticamente tratar facções como terroristas? Qual o impacto para o Estado de Direito, para a soberania nacional e para a política de segurança pública? Este artigo busca responder tais perguntas.
2. Arquitetura jurídica brasileira: crime organizado x terrorismo
O Brasil dispõe de diferentes marcos normativos para enfrentar organizações criminosas e o terrorismo. A Lei nº 12.850/2013 define a organização criminosa e prevê penas e medidas processuais voltadas à investigação de estruturas de crime organizado. Já a Lei nº 13.260/2016 regula o terrorismo: "O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos [...] por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública."
As diferenças são claras: o terrorismo exige motivação "ideológica" ou de discriminação e finalidade de terror social - não basta a prática de atividade criminosa continuada ou para lucro. Isso delimita o âmbito de aplicação da lei.
Assim, a simples rotulação de uma facção como "terrorista" não implica automaticamente o enquadramento legal: há que se verificar a adequação dos requisitos formais do tipo penal.
Além disso, a lei antiterrorismo gera todo um conjunto de disposições processuais especiais, o que sugere que seu uso indiscriminado pode gerar consequências significativas para garantias individuais.
No plano legislativo, há projetos em tramitação que visam equiparar mais fortemente facções a grupos terroristas ou alterar o tipo penal para ampliá-lo.
Portanto, juridicamente, a ideia de "terrorismo doméstico" aplicada a facções exige cuidado técnico: sem mudança legislativa ou prova dos elementos, o recrutamento desse rótulo permanece incerto.
3. A retórica do "terrorismo doméstico": entre o medo e a política
O uso do termo terrorismo para facções conecta-se a uma construção discursiva: elas deixam de ser "apenas criminosos" e passam a ser "inimigos internos que aterrorizam a sociedade". Essa mudança de categoria tem efeitos simbólicos poderosos, e visíveis no discurso público e midiático.
Ao rotular facções como terroristas, o Estado projeta imagem de força, urgência e exceção. Isso alimenta o medo, legitima ações letais, reduz o espaço da reflexão e intensifica o apoio público à violência como ferramenta de segurança.
Mas esse tipo de retórica também produz vulnerabilidades: transforma política de segurança em espetáculo de guerra, enfraquece o enfoque preventivo, obscurece causas estruturais (desigualdade, exclusão, racismo) e favorece uma lógica de extermínio antes da investigação e responsabilização.
Em suma: o discurso de terrorismo doméstico pode trazer apelos simbólicos de reconhecimento social para o poder, mas também riscos de desvirtuamento da justiça criminal e da legitimidade democrática.
4. O risco geopolítico: o enquadramento como "terrorismo" e a política externa dos EUA
4.1 Mecanismos dos EUA e sanções internacionais
Os Estados Unidos mantêm instrumentos que designam organizações como "Foreign Terrorist Organizations" (FTO) ou "Specially Designated Global Terrorists" (SDGT), com base em legislação como o Immigration and Nationality Act (INA) e ordens executivas. Dessa forma, organizações estrangeiras que praticam ou planejam violência, assassínios ou suporte a atos terroristas podem ser sancionadas, ter ativos congelados, membros bloqueados e cooperação internacional intensificada.
Quando facções brasileiras são alvo de atenção por parte dos EUA - como a Primeiro Comando da Capital (PCC) - o Tesouro dos Estados Unidos incluiu a organização entre entidades sancionadas por terrorismo financeiro.
4.2 Relação Brasil-EUA e soberania brasileira
Em 2025, como mencionado, o Brasil rejeitou formalmente pedido dos EUA para classificar a PCC e a Comando Vermelho (CV) como terroristas, citando que a legislação brasileira exige motivação ideológica ou de discriminação para o tipo-terrorismo.
Essa recusa demonstra que o Brasil preserva pauta própria de segurança e entende que enquadrar facções como terroristas implica implicações de soberania e alinhamento externo.
4.3 Implicações práticas e riscos
Quando uma facção é considerada "terrorista", abre-se a porta para maior intervenção de mecanismos de segurança internacionais, inclusive cooperação técnica, extradições, congelamento de ativos, mais vigilância transnacional, e até pressões diplomáticas. Isso também pode gerar perdas de autonomia: decisões que antes cabiam apenas ao Estado brasileiro passam a depender de alinhamentos externos.
Além disso, o uso dessa categoria pode conduzir o país a adotar lógica militarizada e de exceção, em vez de lógica de justiça criminal, o que afeta não apenas a política pública de segurança, mas a imagem internacional, as relações diplomáticas e a negociação soberana de interesses estratégicos (mineração, Amazônia, tráfico internacional).
4.4 Síntese
Dessa forma, classificar facções como terroristas possui um risco de instrumentalização geopolítica: se o rótulo autoriza maior ação ou influência externa - especialmente dos EUA - isso pode comprometer a soberania nacional e deslocar a política de segurança para a arena internacional de combate ao terrorismo, não apenas do crime organizado. Esse desdobramento exige ponderação.
5. Necropolítica e populismo punitivo: o poder que governa pela morte
A classificação de facções como terroristas conecta-se à noção de necropolítica, proposta por Achille Mbembe, que descreve formas de poder que se exercem pela morte e pela seleção de quem pode viver ou morrer.
Quando o Estado utiliza a retórica de "guerra ao terror interno", o uso da força letal se intensifica, a distinção entre combatente e civil se dilui, e a lógica punitiva se transforma em espetáculo.
O populismo punitivo apropria esse mecanismo: o eleitor, cansado da insegurança estrutural, aprova o uso da violência como resposta imediata. A lógica de extermínio torna-se marketing eleitoral.
No Brasil, essa dinâmica é visível nas operações que precedem grandes eventos, na militarização de favelas e no discurso de "bandido bom é bandido morto".
Assim, a necropolítica aparece como matriz simbólica e institucional que alimenta práticas de violação de direitos em nome da "segurança".
6. Implicações éticas, jurídicas e democráticas
6.1 Estado de exceção e erosão dos direitos
O reconhecimento de grupos internos como terroristas pode levar à adoção de regimes legais excepcionais, em que garantias fundamentais (como habeas corpus, contraditório ou regra de ouro no direito penal) podem ser enfraquecidas. Essa transição de "justiça criminal" para "guerra interna" representa risco de institucionalização da exceção permanente.
6.2 Justiça penal vs. segurança militar
O paradigma de crime organizado pressupõe investigação, processo penal, provas e responsabilização. O paradigma terrorista introduz elementos de segurança nacional, sigilo, execução rápida, inteligência militar. Misturar os dois pode comprometer a justiça, favorecer abusos e atingir populações vulneráveis de forma desproporcional.
6.3 Controle democrático e proporcionalidade
Democracias exigem que o uso da força estatal seja proporcional, temporário, sujeito a controle e prestação de contas. A retórica de terrorismo doméstico reduz esse controle: cria "inimigo interno" e normaliza óbitos sob a justificativa de segurança. A consequência é o enfraquecimento do Estado de Direito.
6.4 Soberania, legitimidade e futuro político
Se o Estado passa a governar majoritariamente pela violência, sua legitimidade se fragiliza. O cidadão perde confiança, o sistema penal se apresenta como espetáculo e não como instrumento de justiça, e a democracia se reduz à lógica da força.
Portanto, a classificação de facções como terroristas apresenta um dilema ético: pode gerar recursos punitivos mais severos, mas também abre espaço para violações sistemáticas, militarização e perda de legitimidade democrática.
7. Conclusão
A proposta de qualificar facções criminosas brasileiras como organizações terroristas tem apelo político e simbólico - oferece a promessa de resposta dura à violência estrutural. No entanto, ao nível jurídico, encontra obstáculos na legislação brasileira, cuja definição de terrorismo exige motivação específica e terror social. Ao nível geopolítico, abre canal para cooperações externas e pressões internacionais, que podem comprometer soberania. Já ao nível ético e democrático, traz riscos de exceção, militarização, erosão de garantias e legitimidade.
A segurança pública brasileira precisa de solução estrutural - educação, políticas sociais, integração territorial - não apenas rótulos e punição. A combinação entre crime organizado, terrorismo, política e globalização exige que o Brasil avance com cautela, garantindo que a resposta ao crime seja justa, proporcional e democrática.
Referências
BRASIL. Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo. Brasília: Presidência da República, 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13260.htm. Acesso em: 05 nov. 2025.
BRASIL. Reuters. Brazil rejects US request to classify local gangs as terrorist organizations. Brasília, 7 maio 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/americas/brazil-rejects-us-request-classify-local-gangs-terrorist-organizations-2025-05-07/. Acesso em: 05 nov. 2025.
Estados Unidos. Designation of International Cartels. Washington, DC: US Department of State, 20 fev. 2025. Disponível em: https://www.state.gov/designation-of-international-cartels. Acesso em: 05 nov. 2025.
BRASIL. Criada há cinco anos, Lei Antiterrorismo gerou efeito cascata no Legislativo. Brasil de Fato, 20 dez. 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/12/20/criada-ha-cinco-anos-lei-antiterrorismo-gerou-efeito-cascata-no-legislativo-com-outros-36-pls/. Acesso em: 05 nov. 2025.
FATF-GAFI. Brazil: Mutual Evaluation Report 2023. Paris: Financial Action Task Force, 2023. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/content/dam/fatf-gafi/mer/Brazil-Mutual-Evaluation-2023.pdf. Acesso em: 05 nov. 2025.
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