Acostumado à condição de estilingue, o Partido dos Trabalhadores começa a recolher os cacos do seu discurso moralizante, abalado graças às revelações explosivas de que seus dirigentes também recorreram à prática do caixa dois para financiar campanhas eleitorais. Mas, ainda que tentem esconder, as mãos que hoje apedrejam conservam as cicatrizes de um passado recente, provocadas também por denúncias de crime eleitoral.
Se procede o entendimento de que a revelação do nebuloso esquema de financiamento de campanha que abasteceu as contas do PT e de partidos aliados reduziu a pó o propalado monopólio da ética petista, não menos verdadeira é a constatação de que essas irregularidades antecedem às armações assumidas pela dupla Delúbio Soares e Marcos Valério Fernandes.
A fim de refrescar a memória do leitor, o Congresso em Foco levantou quatro casos de caixa dois que um dia ganharam as páginas dos jornais e se perderam no emaranhado das denúncias mais recentes. Os resultados mostram que, bem antes de o PT sonhar em subir a rampa do Planalto, também o PSDB e o PFL foram acusados de maquiar suas prestações de contas à Justiça Eleitoral.
FHC em apuros
Em novembro de 2000, dois anos após a reeleição do então presidente Fernando Henrique Cardoso, os jornais noticiaram a existência de planilhas eletrônicas, feitas pelo próprio comitê tucano, que indicavam a existência de um caixa dois em torno de R$ 10,120 milhões na campanha presidencial partido.
Quando as denúncias vieram à tona, FHC utilizou a mesma estratégia adotada por Lula hoje: apelou para o silêncio. "Quem pode responder a isso é o comitê eleitoral, chefiado pelo ex-ministro Bresser Pereira", informou a assessoria presidencial à época. Procurado pela reportagem do Congresso em Foco para comentar o episódio, o ex-presidente não retornou as ligações (leia mais) . Candidato derrotado ao Palácio do Planalto, o atual prefeito de São Paulo, José Serra, foi alvo, em duas oportunidades, de denúncias de caixa dois (leia mais).
O PFL também já provou do veneno que hoje observa, com um indisfarçável prazer, o PT experimentar. Foi em 2002, quando o jornal Folha de S. Paulo divulgou um detalhado dossiê sobre contas irregulares do partido no Paraná. O alvo das denúncias era o então prefeito de Curitiba, Cássio Taniguchi. Documentos obtidos pela Folha com pessoas ligadas ao comitê de Taniguchi revelavam uma diferença de R$ 29,8 milhões entre os gastos oficialmente declarados pelo PFL ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) e o que realmente havia sido investido pelo partido na campanha à prefeitura (leia mais).
Respingos do valerioduto
Pefelistas e tucanos não ficaram imunes nem mesmo aos respingos do chamado valerioduto. Apesar de o grosso dos recursos levantados pelo empresário ter sido destinado a petistas e partidos da base aliada, dois nomes da oposição figuram como beneficiários do esquema de Valério. Um deles seria o presidente nacional do PSDB, senador Eduardo Azeredo (MG). De acordo com o tesoureiro da campanha de Azeredo ao governo de Minas em 1998, Cláudio Mourão, o empresário teria repassado à chapa encabeçada pelo tucano o equivalente a R$ 11,7 milhões, tomados por empréstimo dos bancos BMG e Rural.
A prestação de contas do partido ao TSE atesta que o custo total daquela campanha foi de R$ 8,5 milhões. Mourão, no entanto, afirmou à imprensa que os gastos eleitorais dos tucanos ultrapassaram a casa dos R$ 20 milhões. Confrontado com a denúncia, Azeredo se apresentou espontaneamente à CPI dos Correios. Afirmou nunca ter autorizado qualquer empréstimo bancário para financiar as campanhas do partido em Minas. Não descartou a hipótese, mas responsabilizou o ex-tesoureiro pela possível transação.
A primeira pedra
A quebra do sigilo das empresas de Valério no Banco Rural em Brasília revelou um saque de R$ 102.812,76 na conta da empresa SMP&B por Nestor Francisco de Oliveira, tesoureiro da campanha à prefeitura de Belo Horizonte do deputado Roberto Brant (PFL-MG) em 2004. Brant admitiu que deixou de declarar à Justiça Eleitoral cerca de R$ 150 mil. Reconheceu ter sido beneficiário do saque e disse que o dinheiro, repassado pela agência de publicidade, era uma doação feita pela siderúrgica Usiminas. Ex-ministro da Previdência no governo Fernando Henrique, o deputado partiu para o contra-ataque: "Quem não tiver recebido dinheiro não contabilizado que atire a primeira pedra".
O argumento do pefelista reforça o discurso feito pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), que, na abertura do depoimento prestado à CPI dos Correios, acusou os colegas de mentirem na prestação de conta de suas campanhas eleitorais. "O único partido virgem de caixa dois na Casa é o Psol, porque foi criado recentemente. Mas só até as próximas eleições", ironizou.
Perplexão e revolta
Vice-líder do PT na Câmara, o deputado Henrique Fontana (RS) admite que o seu partido errou e deve ser punido, mas afirma que a oposição tenta passar uma visão fantasiosa em relação à prática de caixa dois nas campanhas eleitorais. "A postura deles é pautada pelo cinismo e pela hipocrisia. Não serão eles que, hipócrita e cinicamente, dirão que o caixa dois e os problemas de tráfico de influência surgiram no dia 1º de janeiro de 2003. Pregam a inquisição e a condenação do PT por uma prática que, infelizmente, é cometida por todos os partidos", disse ao Congresso em Foco .
Até membros petistas da ala radical rechaçam a postura do bloco contrário ao governo. Para o deputado Ivan Valente (SP), o PT cometeu um erro histórico ao permitir que "uma direita com tradição em corrupção pose como ícone da moralidade". "Ver essa direita enganar a população é algo que nos deixa bastante perplexos e indignados. É uma tristeza", afirmou.
Esquema peculiar
Um dos membros mais atuantes da oposição na CPI dos Correios, o deputado Onyx Lorenzoni (PFL-RS) diz que, apesar de o uso de verbas irregulares em campanha não ter sido inaugurado pelo PT, o esquema de caixa dois nunca esteve tão impregnado na administração federal. "Queremos pegar os corruptores, doa a quem doer", disse o vice-líder do PFL.
A peculiaridade no caixa dois montado por dirigentes petistas também chama a atenção do cientista político João Castro Neves, do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos (Ibep). "O fato inédito, no caso do PT, é que o partido usou dinheiro de fundos de pensão, fez remessas ao exterior e verbas de estatais. Antes podia até existir, mas agora há envolvimento direto de dinheiro público. Outra coisa que chama a atenção são os valores, quase na casa dos bilhões de reais", analisou.
Como forma de tentar combater o uso de recursos irregulares em campanhas, Neves aponta como a melhor alternativa o financiamento público de campanha, em discussão na Câmara. Desse modo, empresas privadas não receberiam compensações por eventuais contribuições que fizessem a candidatos eleitos. Porém, ele afirma que a questão ainda esbarra na vontade popular. "Difícil é argumentar com as pessoas que a melhor forma de combater a corrupção é dar R$ 800 milhões em verbas públicas para financiar partidos", pondera o cientista político.