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Michel Platini
saúde pública
17/5/2025 17:00
Um dos pontos mais controversos da nova normativa é a proibição do uso de bloqueadores hormonais antes dos 18 anos. Essa determinação desrespeita o acúmulo de estudos que demonstram a importância do bloqueio puberal como uma estratégia eficaz e segura para o enfrentamento da disforia de gênero. De acordo com as evidências científicas mais recentes, o ideal é que essa intervenção ocorra no início da puberdade, entre os 8 e 11 anos em meninas, e entre os 9 e 12 anos em meninos. Esse período é considerado a janela crítica para evitar o desenvolvimento de características sexuais secundárias que acentuam o sofrimento psíquico e aumentam o risco de depressão, automutilação e suicídio. O bloqueio puberal é reversível, permite tempo adicional para a consolidação da identidade de gênero e reduz a necessidade de procedimentos cirúrgicos mais invasivos no futuro. A decisão do CFM, ao inviabilizar esse cuidado, fecha essa janela de oportunidade e aprofunda o sofrimento de jovens que já enfrentam enormes barreiras para existir.
Além disso, a resolução impõe que a terapia hormonal só pode ser iniciada após um ano de acompanhamento exclusivamente por psiquiatras e endocrinologistas, ignorando a atuação de médicos de família, pediatras e clínicos gerais, profissionais que compõem a linha de frente do Sistema Único de Saúde - SUS e que têm histórico de atuação ética e qualificada no acompanhamento da população trans. Trata-se de uma limitação artificial e discriminatória, que desconsidera a realidade do sistema público de saúde, marcado por escassez de especialistas, longas filas de espera e desigualdades regionais. Na prática, essa exigência não apenas dificulta o acesso à hormonização, mas o inviabiliza para a maioria da população, empurrando pessoas trans, especialmente as mais vulneráveis, para tratamentos clandestinos e inseguros.
Outro aspecto inaceitável da resolução está no artigo 5º, que proíbe a prescrição de hormônios em qualquer hipótese antes dos 18 anos, inclusive nos momentos de disforia grave. Tal proibição é cruel. Diversos estudos demonstram que o sofrimento psicológico causado pela incongruência de gênero pode levar ao suicídio, especialmente entre adolescentes. A prevalência de pensamentos suicidas entre jovens trans no Brasil chega a 82%, e 42% já tentaram tirar a própria vida. Ao negar acesso ao tratamento, o CFM não apenas ignora esses dados alarmantes, mas contribui ativamente para o agravamento desse cenário. Em vez de oferecer alternativas de cuidado, a resolução impõe o silêncio, a dor e o abandono.
A resolução também determina que as cirurgias com potencial esterilizador só poderão ser realizadas a partir dos 21 anos. Tal restrição viola frontalmente o Código Civil brasileiro, que estabelece a maioridade legal e a plena capacidade civil aos 18 anos. Negar a uma pessoa adulta, lúcida e capaz o direito de decidir sobre seu próprio corpo é uma afronta à autonomia individual e uma regressão inaceitável no campo dos direitos humanos. Como bem destacam as sociedades científicas em seu posicionamento conjunto, "postergar a intervenção cirúrgica por três anos em indivíduos que já atingiram a maioridade legal [...] é medida sem justificativa científica robusta, e com potencial de causar mais sofrimento".
A consequência direta dessa resolução é o aumento do risco à vida. Sem acesso ao acompanhamento médico adequado, muitas pessoas trans poderão recorrer a formas alternativas e clandestinas de transição, como o uso de hormônios sem prescrição e, em casos ainda mais graves, à aplicação de silicone industrial. Este último é um dos maiores exemplos de como a marginalização médica pode gerar sequelas permanentes à saúde. A aplicação de silicone industrial, comum em contextos de exclusão, pode provocar infecções, necroses, embolias pulmonares e até a morte. São inúmeros os relatos de pessoas trans que, por não conseguirem acesso ao processo transexualizador pelo SUS, foram levadas a se mutilar, adoecer e, por vezes, morrer.
A falta de base científica da Resolução nº 2.427/2025 é evidente. Apesar de alegar preocupação com arrependimentos ou desfechos negativos, o próprio documento menciona que menos de 1% das pessoas trans teria desistido da transição: dado sem fonte clara e que contraria estudos mais robustos, os quais apontam que, quando há destransição, ela ocorre majoritariamente em função de fatores externos, como pressão familiar, estigma social, violência e exclusão. Em vez de enfrentar esses condicionantes sociais que tornam a vida trans insustentável, o CFM opta por restringir ainda mais os direitos dessa população, sob a justificativa frágil de "proteger".
A forma como a resolução foi construída também merece críticas contundentes. Não houve consulta pública, tampouco escuta às sociedades científicas ou às organizações da sociedade civil. O processo foi conduzido de forma opaca, excludente e autoritária, em flagrante desrespeito aos princípios democráticos e aos direitos humanos. A ausência de diálogo evidencia que essa resolução não foi feita para cuidar, mas para controlar, silenciar e reprimir.
Em um país onde a expectativa de vida de uma pessoa trans gira em torno de 35 anos, qualquer decisão institucional que imponha obstáculos ao acesso à saúde deve ser entendida como uma forma de violência. A Resolução nº 2.427/2025 não apenas compromete a saúde física e mental de uma população já historicamente vulnerabilizada, mas também legitima práticas excludentes e transfóbicas dentro do próprio sistema de saúde. Trata-se de uma medida que, se não for revogada, deixará cicatrizes profundas: físicas, emocionais e políticas em milhares de vidas.
Diante disso, é urgente que o CFM suspenda os efeitos dessa resolução e promova uma revisão baseada na ciência, na ética médica e nos direitos humanos. Que se abra o debate com os especialistas, os movimentos sociais e, sobretudo, com as próprias pessoas trans, que são as verdadeiras protagonistas de suas histórias. O acesso à saúde é um direito constitucional, e não pode ser condicionado a dogmas, preconceitos ou moralismos. Negar esse cuidado é negar o direito à vida. E essa é uma responsabilidade que o Estado brasileiro e suas instituições não podem se furtar a enfrentar.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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